quarta-feira, 20 de abril de 2011

O animismo fetichista de nossos desarmamentistas

Em antropologia social, o termo animismo (do latim anima, "alma", "vida") - cunhado no século XIX por Sir Edward Tylor no livro Primitive Culture (1871) - qualifica a crença, comum a muitos povos 'primitivos', segundo a qual a posse de uma 'alma' não se restringe à espécie humana, observando-se também em animais, plantas, rochas, árvores, rios, fenômenos metereológicos e até mesmo em artefatos manufaturados. Em outras palavras, o animismo é a crença de que a condição humana (subjetividade, intencionalidade, inteligência, razão, desejo etc.) não é exclusividade da espécie humana.

Desde Tylor, e ao longo de muito tempo, o animismo foi considerado uma forma arcaica ou primitiva de religião. Dentro do paradigma evolucionista dominante na virada do século XIX para o XX, acreditava-se que ele seria uma característica de culturas 'atrasadas' (nativos das Américas, aborígenas australianos, tribos africanas etc.). Nesse contexto, o médico e antropólogo Nina Rodrigues escreveu O Animismo Fetichista dos Negros Baianos (1900), a primeira monografia significativa sobre as religiões afro-brasileiras. 

Adepto do darwinismo social e do racismo científico comuns à elite intelectual de sua época, Nina Rodrigues apontava a crença em fetiches (objetos supostamente dotados de poderes mágicos e sobrenaturais), característica das religiões afro-brasileiras, como um entrave à cristianização e à adesão ao pensamento científico. O animismo fetichista era, para Nina Rodrigues, uma das causas do atraso nacional, pois, segundo ele, tal crença não se restringia aos negros baianos, estando presente em vastas parcelas da sociedade brasileira.

Depois de um período de certo esquecimento, na década de 1990 o conceito de animismo voltou à moda na antropologia, em especial na sub-área de estudos sobre as culturas ameríndias sul-americanas (sub-área conhecida na França como "americanismo tropical", e no Brasil como "etnologia indígena"). 

O antropólogo francês Philippe Descola, em especial, sugeriu ser o animismo um traço marcante entre os povos caçadores-coletores da América do Sul. Segundo Descola, o animismo é uma visão-de-mundo que "confere disposições humanas e atributos sociais aos seres naturais". Já bem distante do paradigma evolucionista à la Tylor e Nina Rodrigues, o animismo em Descola não é mais índice de atraso evolutivo, mas uma característica cultural dos ameríndios sul-americanos.

Lamento o fato de que Edward Tylor, Nina Rodrigues e Philippe Descola não tenham tido a chance de conhecer os desarmamentistas brasileiros contemporâneos. Neste caso, sim, eles estariam diante de animistas de verdade, podendo decidir, com propriedade, tratar-se o animismo de atraso mental ou característica cultural. No caso específico, creio que as duas alternativas não se excluem.

O fetiche mais significativo da religião desarmamentista é, evidentemente, a arma de fogo, a quem os seus fiéis atribuem poderes mágicos e intencionalidade. Para os desarmamentistas, o problema do alarmantes índices de homicídios no país (que variam numa média de 40 a 50 mil por ano) será resolvido quando as armas legais e registradas - compradas por cidadãos de bem para sua proteção, e mantidas em casa para serem usadas apenas em casos extremos - forem apreendidas e proibidas. 

Os desarmamentistas parecem acreditar que a mera existência das armas é uma ameaça, independentemente de quem a esteja portando e para qual finalidade. É como se as armas fossem sair sozinhas das gavetas e dos cofres e - pá! pá! pá! (cito o excelentíssimo senador e pândego Eduardo Suplicy) - começar a matar pessoas. O fato de que seja possível cometer um homicídio com qualquer instrumento - até mesmo (haja criatividade!) com a vagina, como se noticiou recentemente (ler aqui) - não basta para convencer os desarmamentistas de que o problema talvez não seja com as armas, mas com os assassinos.

A lógica (lógica?) do argumento desarmamentista é a seguinte: as armas em circulação nas mãos dos criminosos costumam ser roubadas de pessoas que as adquiriram legalmente. Sendo assim, é preciso proibir o comércio legal para impedir que elas sejam usadas pela criminalidade.

Não é um raciocínio (raciocínio?) magnífico? Não, não é. Em primeiro lugar, ele desconsidera o fato - reconhecido há tempos pelo traficante Fernandinho Beira-Mar - de que uma grande parte das armas do crime organizado, que por sua vez é responsável pela maioria dos homicídios no país, é contrabandeada do exterior. Só as FARC - que, atenção!, nosso governo desarmamentista insiste em não qualificar de grupo terrorista, e com quem manteve relações políticas durante muitos anos no âmbito das reuniões do Foro de São Paulo - vendem uma grande quantidades de armas de fabricação estrangeira para quadrilhas como o CV e o PCC. Isso para não falar de outras fontes de armas contrabandeadas, atividade cada vez mais fácil, agora que o governo reduziu verbas e o contingente de policiais federais a vigiar nossas fronteiras (ver aqui). Ignorar esse fato já mostra as más intenções do desarmamentismo oficial.

Mas, imaginando verdadeira a hipótese de que o grosso das armas utilizadas pelos criminosos seja de origem legal, isso lá seria razão para penalizar aqueles que as compraram legalmente, enfrentando toda a rigidez e demora do processo licenciatório? 


Não é no momento legal de sua trajetória que as armas contribuem para o elevado índice nacional de homicídios, mas apenas quando, após terem sido roubadas, elas passam ao seu momento ilegal. Sendo assim, as alegações dos desarmamentistas são furadas, por uma série de motivos.

Em primeiro lugar, impedir que os cidadãos de bem tenham armas com o argumento de que, afinal, elas podem ser roubadas e utilizadas por criminosos é simplesmente um atestado de incompetência por parte do governo, que está admitindo, assim, ser incapaz de proteger o cidadão contra o roubo de sua propriedade (armas inclusas). Diante dessa admissão de inépcia, o contribuinte brasileiro bem faria em garantir sua própria proteção!

Em segundo lugar, a tentativa de responsabilizar a vítima do roubo só não é tão escandalosa quanto o fato de que os desarmamentistas do governo, eles próprios, continuarão protegidos por seguranças armados até os dentes, quando não por suas próprias armas (ver, por exemplo, o caso de Tarso Genro, um desarmamentista espertinho que, ele mesmo, tem posse de arma e duas armas de fogo guardadas em casa). 


De um lado, o governo permite que o crime organizado atue à vontade - ou alguém ainda leva a sério a política do "espanador" das UPPs? - e, de outro, continuará tendo direito à proteção armada. Ou seja, a solução governamental para diminuir os homicídios no país é desarmar unilateralmente as únicas pessoas que não têm culpa de nada: os cidadãos que compram armas de forma legal. Se depender do ministro do STF Luiz Fux, então, essas pessoas terão suas casas invadidas e as armas apreendidas na marra, numa proposta clara de violação da Constituição, que seria quase cômica - considerando-se vir da boca de um alto magistrado - se não fosse trágica. Não bastasse a ameaça dos criminosos comuns, agora temos que temer a ação dos criminosos oficiais, que ameaçam invadir nossas casas e nos impor à força sua agenda. E ainda querem que as pessoas entreguem alegremente suas armas? Não tenho uma arma, mas, se tivesse, agora mesmo é que não a entregaria. Quando gente como José Sarney e Renan Calheiros começam a falar em desarmamento, é hora de sacar a pistola!

Em terceiro lugar, pergunto-me: por que somente as armas de fogo? Por que não proibir também a posse legal de aparelhos de celular? Afinal, também eles são roubados e utilizados por criminosos para, de dentro dos presídios (onde, aliás, costumam funcionar melhor do que fora deles), comandar seqüestros, chacinas e execuções. Se a lógica vale para as armas, deve valer também para celulares, veículos e quaisquer outras ferramentas potencialmente úteis numa ação criminosa. Por que Luiz Fux, José Sarney e José Eduardo Cardozo não sugerem também a proibição da venda legal daqueles utensílios? É um absurdo que o cidadão comum tenha um celular e um carro, que serão posteriormente roubados e utilizados pela criminalidade. Deixemos que apenas os profissionais - bandidos e políticos (se ainda for  possível distinguir uns dos outros) - possuam tais coisas. E Lancemos logo a campanha, que deverá ser apoiada pelos bonzinhos do Viva Rio e pelo beautiful people das classes artística e intelectual: "Entreguem seu celular e seu carro em troca de um autógrafo (no caso, a impressão digital do polegar) do Tiririca!"

Em quarto lugar, o fato dos desarmamentistas terem aproveitado a tragédia da escola em Realengo para lançar a nova campanha é, não apenas imoral, como substancialmente absurdo. O argumento era o seguinte: não fosse tão fácil obter armas no Brasil, aquele evento não teria ocorrido. "Está provado, é científico!", concluiu Rodrigo Pimentel, ex-policial, consultor de segurança pública da Rede Globo e desarmamentista convicto.

Mas quem disse que é fácil conseguir armas no Brasil? Pode ser fácil consegui-las ilegalmente, mas obtê-las dentro da lei - como tudo no país - é um verdadeiro martírio. E a campanha do desarmamento - que incluía a proposta de Sarney de realizar um novo referendo (o ministro Luiz Fux disse que o resultado do primeiro foi "errado") sobre a proibição da venda legal de armas - não seria eficiente para o caso das armas ilegais, apenas para as legais. Logo, o psicopata de Realengo teria conseguido suas armas de qualquer jeito. E, ainda que não as conseguisse, teria arrumado outro jeito de cometer a barbárie. Sendo assim, culpar o comércio legal de armas por aquela tragédia é de um cinismo espantoso.

Mais ainda. Toda pessoa racional sabe que casos como os de Realengo, em que pessoas mentalmente desequilibradas vão a locais públicos dispostos a matar gente indefesa, são praticamente impossíveis de evitar. Nenhuma política de segurança pública, por mais eficiente, tem como prever e impedir tais ocorrências. A única ação comprovadamente eficiente - dentro dos limites do possível, é claro - contra tais eventos é, justamente, aquela de cidadãos de bem armados que, num ato de bravura, e tendo competência para tanto, impedem ou minimizam os estragos causados pelo atirador.

É o que mostra um detalhado estudo de John R. Lott Jr. e William M. Landes, da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago. Segundo os autores: 

"De 1977 a 1999, os estados norte-americanos que adotaram leis que permitiam o porte livre de armas apresentaram uma queda de 60% nos ataques contra indivíduos e uma queda de 78% nas mortes em conseqüência de tais ataques".

As razões são óbvias. Por mais alucinados que sejam, os atiradores sabem que, nos estados que permitem a posse de arma, há maiores chances de, em se tratando de locais públicos, haver um cidadão armado que possa tentar impedi-lo. Por que será, afinal de contas, que massacres como os de Realengo sempre ocorrem em escolas e universidades, e nunca em locais como a National Rifle Association, um quartel ou o Palácio do Planalto?

Mas, mesmo nos casos em que o efeito dissuasivo falha, o atirador de rua faz menos vítimas onde há pessoas comuns armadas do que em lugares onde não as há. Depois da tragédia de Realengo, a imprensa brasileira logo relembrou casos como os de Columbine, nos EUA. No entanto, nenhum veículo de imprensa achou por bem mencionar os casos em que cidadãos armados conseguiram evitar ou minimizar o massacre. 

Os autores do estudo citado mencionam vários casos do tipo, entre eles: 1) Os dois estudantes de Virginia que, em 2002, pegaram suas armas no carro e conseguiram neutralizar um colega atirador; 2) O policial de folga, porém armado, que levava sua filha à escola no dia em que um aluno resolveu matar os outros em Santee (Califórnia), em 2001; 3) O dono de um restaurante em Edinboro (Pensilvânia), que, em 1998, usou sua arma para render o aluno que matara um professor e ferira mais três; 4) O diretor que também pegou sua arma no carro para apontá-la a um estudante homicida em Pearl (Mississipi), no ano de 1997. Em cada um desses casos, o número de vítimas não passou de três. Em Realengo, como se sabe, foram doze. E sabe-se lá quantas mais teriam sido se aquele bendito policial não houvesse aparecido e agido com firmeza!

Nos EUA - que os brasileiros (logo os brasileiros!) gostamos de ver como uma sociedade violenta e belicista ("não é característica nossa", disse Dilma) - os índices de homicídios são menores nos estados onde há a permissão legal do porte de armas do que nos estados onde não há. Nos EUA também - onde compra-se armas com certa facilidade - há, anualmente, cerca de 6 homicídios por 100 mil habitantes. No Brasil, em compensação - onde comprar uma arma de maneira legal é mais difícil do que ver um gol do Deivid, atacante do Flamengo -, há cerca de 26 homicídios por 100 mil habitantes: quase cinco vezes mais do que nos EUA, e numa população menor.

Mas não fiquemos apenas entre Brasil e EUA. Viajando das Américas para a Europa, tomemos os casos da Suíça e da Inglaterra. 

Na Suíça, virtualmente todo cidadão do sexo masculino possui uma arma e é treinado para usá-la. Trata-se, aliás, de uma exigência cívica. A política de exigir que todos os lares tenham uma arma de fogo é uma das principais razões por que os nazistas não invadiram a Suíça na 2ª Guerra Mundial. 


(Por falar em nazistas, convém recordar um fato histórico. Logo antes da terrível "Noite dos Cristais" (Kristallnacht) - quando, em 1938, teve início a infame violência nazista contra os judeus na Alemanha - o chefe de polícia de Berlim, Conde Wolf Heinrich von Helldorf, comandou o desarmamento da população judia, com o confisco de 2.569 armas curtas, 1.702 armas de fogo e 20.000 cartuchos de munição. "Quaisquer judeus ainda achados de posse de armas sem licenças válidas são ameaçados com a mais severa punição", declarou von Helldorf [The New York Times, Nov. 9, 1938, 24]).

No Brasil, o passatempo nacional é o futebol. Nos EUA, é o beisebol. Na Suíça, é o tiro ao alvo de precisão. Mas a prova de que, ao contrário do que crêem nossos animistas, as armas de fogo não saem sozinhas atirando nas pessoas, é que a Suíça é um dos países mais pacíficos do mundo. Lá, há menos do que 1 homicídio a cada 100 mil habitantes por ano, e em 99% dos casos não há arma de fogo envolvida. Lá, um criminosos pensa duas vezes antes de invadir a casa de alguém.

Cruzando o Canal da Mancha, o caso da Inglaterra é bastante ilustrativo. Até agora tenho feito comparações internacionais (entre nações), mas a Inglaterra permite-nos uma interessante comparação intranacional (diferentes momentos de uma mesma nação) no que se refere às relações entre políticas de desarmamento e índices de criminalidade.

Segundo matéria do jornal britânico Mail Online, o número de crimes por arma de fogo aumentou 89% entre 1998 e 2008. "Até aí nada", poderia dizer o leitor. Seria nada, realmente, não fosse o fato de que esse significativo aumento ocorreu exatamente na década seguinte à lei do desarmamento na Inglaterra, que proibiu o comércio de armas de fogo no ano de 1997

Nenhum dado poderia ser mais evidente para comprovar a ausência completa de relação entre desarmamento e diminuição dos homicídios. Minto. O que aquele dado atesta é que há, sim, uma relação entre os dois fatores, e ela é precisamente o inverso do que sugerem os desarmamentistas: quanto menos armada é a população de bem, mais os criminosos ficam violentos e ousados (foi exatamente o que ocorreu na Inglaterra); quanto mais armada é a população ordeira e obediente às leis, menores tendem a ser os índices de homicídios por arma de fogo. 


É aquela coisa do ditado popular, deselegante sem dúvida, mas perfeito nesse caso: "quem tem *%@, tem medo".

Está provado, é científico!

6 comentários:

  1. Muito bom, Flávio! Salvei o texto. Quando vierem com o papinho esquerdopata desarmamentista, é só repassá-lo.

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  2. Caro Flávio,

    nossa, fiquei impressionado com seu texto! Não só porque é muito bom, mas porque eu já tinha, pensando com meus botões, chegado a conclusões bem parecidas! E sabe por que chegamos, mesmo sem nos comunicar, a conclusões similares? Porque nossas reflexões foram pautados e guiadas pela LÓGICA, simples e comezinha lógica, buscando dados na realidade objetiva para fundamentar nossas opiniões. O fato de os apologistas do desarmamento precisarem dar uma ignoradinha nos números, nas estatísticas, na realidade já revela a solidez de seus argumentos...

    Quando uma opinião precisa, para ser mesmo expressada, jogar para debaixo do tapete a matemática e o racicínio lógico, quem defende essa opinião ou é muito ingênuo ou é vigarista...

    Abraços,

    Thiago - RJ

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  3. A propósito: consegui achar um comentário que fiz a um post do Reinaldo Azevedo há algumas semanas, sobre o tema. Pela pertinência, trago-o para cá. Vou postar separado por causa do limite de caracteres.

    Abraços!

    Thiago - RJ

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  4. "Caro Reinaldo,
    eis uma reflexão que gostaria de compartilhar com você. Não precisa publicar, se não achar pertinente. Tudo o que segue, obviamente, é minha modestíssima opinião. Eventuais furos lógicos, por favor, aponte sem dó. Acho que meu raciocínio faz algum sentido; mas, caso dê para aprimorá-lo, à vontade! Ficarei agradecido.
    Abraço.
    ...
    Um colega que se acha muito progressista (fazendo, conscientemente, uma contraposição com quem ele entende ser reacionário) vem me lembrar que uma das armas utilizadas pelo assassino de Realengo pertenceu, um dia, a uma pessoa que a comprou legalmente. Esse revólver foi roubado ou furtado (não soube me dizer ao certo) e, depois, revendido ao Wellington. Isto, aparentemente é fato; o problema está na leitura que se faz do fato.
    Em primeiro lugar, deve-se diferenciar as armas cujo comércio é permitido à população civil (ainda que altamente restrito) daquelas cujo comércio é vedado, ou seja, cujo uso é exclusivo de Forças Armadas e de segurança PÚBLICA. Essa distinção não é corriqueira; mesmo as empresas regulares do ramo da segurança privada só podem utilizar as armas cuja venda seja franqueada à população civil. Já viu segurança de carro-forte com AR-15, M-16, HK-33? Com escopeta? Obviamente não. Essas armas têm seu uso disciplinado por normas internas do Exército e qualquer posse ou porte em desacordo com elas é ilegal. Mesmo se um policial civil estiver com um fuzil cujo uso só tenha sido autorizado às Forças Armadas, o porte será ilegal. Há, ainda, armas e munições proscritas, ou seja, que nem as Forças Armadas e de segurança pública podem comprar e usar (balas “dum-dum” ou revestidas de teflon, por exemplo; a PRF não pode comprar metralhadoras .30 e .50, por exemplo). A própria arma em si é ilegal.
    Já em relação às armas cujo comércio é permitido, a legalidade ou ilegalidade não é intrínseca da arma. O que é ilegal é seu porte (posse em local público) ou simples posse (em local privado – numa gaveta do meu criado-mudo, por exemplo). Logo, se uma arma é adquirida legalmente, está na posse do indivíduo que tem autorização, e vem a ser roubada/furtada, a arma “era legal” e “deixou de ser legal”. Se o regular proprietário recupera a arma (digamos que ela seja apreendida pela polícia e devolvida ao legítimo dono), a mesma voltaria a “ser legal”.
    (continua)

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  5. (...) Alguns exemplos demonstram que esse raciocínio não é teratológico.
    Imagine três situações distintas. Um civil portando, legalmente, um revólver .38; um policial militar, com trajes civis, portando a pistola PT 380 da corporação; um recruta da Marinha, soldado, portando um fuzil FAL-762, pertencente à Força, enquanto fica de sentinela numa guarita. Todos são atacados por bandidos e têm suas respectivas armas roubadas (roubo = art. 157 do Código Penal). Todas elas, ato contínuo, são vendidas a traficantes de drogas baseados num determinado local da cidade. A partir daí, tais armas passam a ser “alugadas” a quadrilhas que pretendam realizar outros crimes distintos de tráfico e associação para o tráfico, além do uso pelos próprios traficantes.
    Pergunto: as três armas citadas permanecem “legais”? É cristalino que não. O porte delas está em desacordo com que estipulam as respectivas legislações de regência. O revólver tinha seu uso autorizado ao civil; a pistola, ao PM, inclusive quando de folga; o fuzil, ao praça, exclusivamente em serviço. É esta a realidade dada? Não. E em que momento o porte deixou de estar de acordo com o ordenamento jurídico? Quando foram roubadas.
    Em outras palavras: o que define se a arma “está” na legalidade ou não é seu portador (e, em certos casos, as circunstâncias em que o portador está de posse da arma – nenhum militar pode levar fuzil e granadas para passar o fim-de-semana em casa...).
    Primeira conclusão: ainda que se possa dizer que um dos revólveres tenha origem remota legal, é impossível não admitir que ele utilizou duas armas ilegais em sua chacina. Isto, simplesmente, porque o modo como ele as adquiriu não é o previsto em lei (mais do que isso, é vedado e tipificado como crime de “tráfico de armas”), e porque sua posse de tais revólveres não era autorizada pelo órgão estatal competente.
    Mas por que dei essa volta toda? Porque o eixo atual da discussão é o seguinte: “se o comprador original não pudesse ter adquirido legalmente a arma, o Wellington nunca teria tido acesso a ela”. Bem, isso é umameia-verdade. O que garantiu a ele acesso não foi aquela compra legal; foram, em verdade, duas outras condutas, ambas ILEGAIS: o furto/roubo (1ª); o tráfico – venda ilegal – depois (2ª).
    É, portanto, plenamente legítimo substituir a afirmação categórica referida acima pela seguinte: “se o proprietário legal da arma nunca tivesse sido furtado/roubado, ou se essa arma furtada/roubada tivesse sido apreendida antes de ser contrabandeada, o Wellington nunca teria acesso a ela”. Isso muda totalmente o eixo do debate, não é mesmo? O que ninguém se atreve a dizer é que houve uma escolha consciente em fazer o debate girar em torno daquele primeiro eixo, e não deste segundo, e que essa escolha foi de caráter IDEOLÓGICO, já que em termos lógicos, o segundo eixo faz tanto sentido (ou mais) quanto o primeiro.
    Agora, o arremate: quais das condutas foram eleitas legalmente para ser combatidas pelo estado? As que foram tipificadas como crime! Se esse caso traz discussões de segurança pública, elas devem ser feitas no que respeita aos fatos anteriores à tragédia AOS QUAIS CABIA AO ESTADO DAR COMBATE: o furto, ou roubo; e o posterior contrabando, a venda (essa sim) ilegal feita a Wellington. Ninguém na “grande imprensa” sequer levantou esse ponto.
    (continua)

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  6. Segunda conclusão: houve três condutas relevantes, no que tange à arma, antes da tragédia. Houve uma compra legal de um revólver (até aqui, a arma “era legal”); depois, houve um furto ou roubo desse revólver (a partir daqui, com a ocorrência de crime, a arma “caiu na ilegalidade”); e, posteriormente, houve o tráfico desse revólver (outro crime – a arma “continuou na ilegalidade”).
    Conclusão final: a falha do poder público foi em impedir esses dois últimos fatos, dado que constituem crime; em relação ao primeiro, NADA HOUVE que significasse violação das normas de direito aplicáveis.
    Por tudo isto, o único nexo de causalidade que se pode estabelecer é em relacionado à posse já ILEGAL, tornada ilegal pelo crime, do revólver. Se há uma “culpa”, não é a da compra legal do revólver, mas a dos dois crimes posteriores que levaram o revólver às mãos do psicopata. Crimes que estado não preveniu nem solucionou. O problema não está em o estado não banir o comércio legal de armas; está em o estado não conseguir combater furtos, roubos e contrabandos."

    Thiago - RJ

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