sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Das Virtudes e Vícios do Ceticismo



Em maio de 2012, o autor destas linhas frequentava um curso preparatório para o difícil e concorrido concurso do Itamaraty. Faziam três anos que a revista The Economist estampara em sua capa um Cristo Redentor em forma de foguete, acompanhado da chamada retumbante: “O Brasil decola!” Éramos a sexta economia do mundo, o país vivia um clima de euforia e sonhos de grandeza, e a sua escolha para sediar a Copa do Mundo de futebol dali a dois anos (a “Copa das Copas”, na hoje tragicômica expressão da semi-presidente Dilma Rousseff) parecia confirmar o seu estatuto de potência econômica emergente.
         Numa aula de redação em inglês, foi proposto aos alunos que discorressem sobre a moção: Brazil is no longer the country of the future. It is the country of now [O Brasil não é mais o país do futuro. É o país do agora]. O meu posicionamento sobre a moção é o curto ensaio seguinte, que mantenho em inglês (posto que macarrônico), não apenas por ter sido escrito originalmente nesse idioma, mas por ser o inglês a língua por excelência do ceticismo, a língua de David Hume.
          When, in 1941, the Austrian-Jewish writer Stefan Zweig published his now eminent book "Brazil, land of the future", one could easily understand his reasons. Anguished and depressed by the extending power of the Nazi regime and anti-Semitic ideology all over Europe - a fact he had been noticing notice of since the end of World War I - he must had found a huge relief when, running away from the long winter of those European years, he eventually ended up in a kind of tropical paradise of cordiality and "racial democracy”, as Gilberto Freyre had supposedly stated less than ten years before. From his perspective then, the Brazilian society showed up as a fresh sea of possibilities. However, regardless of the hopes that the new bright and sunny country had infused him with, the fact is that Zweig still committed suicide just one year after the book had been published. On February 23, 1942 a barbiturate overdose cut short the future of the inventor of "Brazil, land of the future". This got to mean something!
          Since Zweig's book came to light, the idea of Brazil as the land of the future started to be manipulated for political and official reasons (although the author was originally referring to some positive features of the Brazilian people rather than of the Brazilian government). The idea was omnipresent, for instance, through the industrialization process in the JK years. The same could be said of the so-called "Brazilian Economic Miracle", during the military dictatorship, when, despite all the political turmoil, economic growth was even bigger than today, when Brazilian economy occupies now the sixth position in the international GDP rank. In sum, what was first an authentic compliment made by an astonished foreigner suddenly became a boasting patriotic motto with at least two not so flattering implications: first, the use of an old-fashioned concept of unilinear and homogeneous progress, as if all the peoples of the world must reach the same peak; second, the exclusive focus on the economic aspect of the so-called "growth", as if this factor alone could guarantee a nice quality of life for the population in general. The utopian idea of a previously known future precludes any realistic consideration of concrete problems of the present. And a more realistic approach would perhaps indicate that Brazil is indeed the country of now… just like any other.
At this point we must ask ourselves: how is the Brazilian "now" faring after all? On the one hand, there are some undeniable improvements that must be considered. In the last twenty years, the strengthening of the Brazilian currency and the relative stabilization of Brazilian economy allowed some great social achievements, the most important of which being maybe the improvement – albeit unsustainable – of the quality of life of the downtrodden. Also, along with the other BRICs, Brazil reached a significant position – albeit not always for good reasons – in the international political scene. On the other hand, no society should feel satisfied in face of a tragic and alarming reality: throughout the past decade, Brazil has maintained an average of roughly 50,000 homicides per year. According to a recent report on the statistics of Brazilian violence (Mapa da Violência 2012), in Brazil, where there are no formal territorial battles, civil war or religious and ethnic disputes, more people were killed in the last four years than in the twelve major armed conflicts all over the world.
This kind of data alone should prevent any society from endorsing the government’s self-boasting motto. In the sense in which has been used, the idea of Brazil as the “country of now” is nothing more than a re-edition of those old jingoistic slogans such as “Brazil, love it or leave it” with an extra Fukuyaman flavor, as if Brazilian history were definitely finished. The September 11, 2001 attacks in Manhattan proved that Fukuyama was deeply wrong. Will “the country of now” need some kind of dramatic lesson as well?
Rio de Janeiro, 01 de maio de 2012

         Escusado dizer que, se o ceticismo me livrou de fazer papel de bobo, a carreira diplomática foi por água abaixo...

quinta-feira, 24 de julho de 2014

A morte e a morte de Ariano Suassuna

Ariano morreu duas vezes. O tempo do show business, da moda e da velocidade de comunicação não era mesmo o tempo de Suassuna. Este nosso tempo decidiu, com a pressa costumeira, antecipar o fim daquele que, em verdade, foi o seu último e mais vigoroso inimigo. 

Com a calma e o vagar típicos da alma sertaneja, o bravo filho do norte ainda cismou de ficar - para o nosso bem, não o dele -, mas é provável que, deste feita, Deus e Nossa Senhora da Compadecida é que tenham perdido a paciência conosco... "Cuida que lá embaixo já não o merecem, você, este nosso filho querido que ora torna à casa celeste", terão dito.

E, de fato, não vínhamos fazendo por merecê-lo.

Perguntado, em uma ocasião, quais eram os dez maiores romances da literatura universal, Suassuna respondeu:

"O senhor está falando com um arcaico. O número de escritores bons e excepcionais é reduzido. Os dez são somente sete: Dom Quixote, Crime e Castigo, O Idiota, Os Demônios, Os Irmãos Karamázov, Guerra e Paz e Em Busca do Tempo Perdido." (link)

Vê-se que, numa época de inclusão populista e falta de critérios (onde qualquer perna-de-pau é chamado de craque; qualquer palpiteiro, de escritor; qualquer pichador, de artista), Suassuna era um juiz rigoroso, e não se envergonhava de sê-lo, ciente de que o Bem e o Belo costumam andar muito próximos.


"As pessoas que julgam antiquada qualquer referência à moral, normalmente se envergonham de usar os critérios de bem e mal em qualquer julgamento, no estético em particular", escreveu Ariano. E disse mais: 

"Na minha época de juventude passei, como todo mundo, por uma fase em que julguei ter me desvencilhado de Deus e dos conceitos de bem e mal. Até o dia em que, lendo Dostoiévski, encontrei uma frase de Ivan Karamazov, que dizia: 'Se Deus não existe, tudo é permitido'. Descobri, na mesma hora, que as normas morais ou tinham um fundamento divino, absoluto, ou não tinham qualquer validade, porque ficariam dependendo das opiniões e paixões de cada um." (link)

Ariano não tinha medo de julgar. Não barateava conceitos como os de "literatura", "arte", "cultura". Jamais cedeu à tentação demagógica de menosprezar o povo brasileiro, encerrando-o em guetos de sub-cultura. Ariano tinha o povo em alta conta. Julgava-o digno do melhor: de Dostoiévski, Tolstói, Proust, Machado de Assis (este por inteiro, sem "simplificações"). Só ele podia dizer, com autoridade e graça, a uma geração que já não o sabe, que funk não é música, que a cultura pop é um lixo, que um Gregório Duvivier não é escritor, que hip hop não é poesia, que Madonna é uma débil mental.

Cultura, para Ariano, significava alta cultura. Ele era a nossa ponte viva entre os autos de Gil Vicente e o melhor da literatura brasileira contemporânea. Queria fazer-nos participar do grande diálogo universal da humanidade consigo mesma. É nesse espectro atemporal, eterno, alheio aos modismos e ao tráfico de influências, que ele via o Brasil. Percebe-se o quão equivocados estavam aqueles que o tomavam apenas por um regionalista. A televisão bem que tentou exotizá-lo e prendê-lo dentro de uma "periferia" qualquer. Mas o espírito de Ariano Suassuna era o exato oposto do Esquenta, da Regina Casé. 

A pátria da qual Ariano faz parte não é uma democracia popular. Não há ingresso mediante sistema de cotas nessa pátria, e quem a ela pertence genuinamente logo reconhece os impostores, por mais marketing, lobby e influência tenham estes a lhes amparar. A pátria de Ariano é a pátria dos grandes escritores, de ontem e de hoje, dos que foram tocados pela graça. A língua de Ariano é a língua da grande literatura. A Cultura de Ariano não é a "cultura" da Lei Rouanet.

Ariano foi, fundamentalmente, o último bastião da alta cultura brasileira, uma idéia que desapareceu do horizonte mental do país, seja nos rincões mais miseráveis da pátria, seja nas mais abastadas elites culturais, econômicas e políticas. O mau gosto brasileiro, hoje, não tem classe, nem cor, nem gênero: ele está em toda parte. 

O bom filho de João Pessoa via na paisagem nordestina de sua obra o que ela tinha de mais universal e humano. "O ser humano é o mesmo em qualquer lugar, em qualquer tempo, em qualquer que seja a sua condição. Você pode ser rico ou pobre, mas os problemas que afetam verdadeiramente o ser humano são os mesmos", escreveu (link).

Foi-se um homem de bom gosto e boa experiência. Um universalista, mas não abstratista. O derradeiro cruzado a nos proteger, impávido na última trincheira, contra a "invasão vertical dos bárbaros" (na expressão de Mário Ferreira dos Santos), já consumada em outras frentes. Bárbaros ou novos bárbaros, no sentido de Ortega y Gasset: "Este nuevo bárbaro es principalmente el profesional más sabio que nunca, pero más inculto también — el ingeniero, el médico, el abogado, el científico."

Querem saber a falta que faz Ariano Suassuna? Não é preciso. Todos iremos senti-la de maneira trágica, com o agravamento das nossas piores aflições hodiernas: o isolamento cultural, a tribalização e, no limite, a total falta de comunicação ensejada pelo culto obsessivo dos particularismos e das idiossincrasias.

Ah! Quão bom seria poder trazer Ariano de volta com a gaita de Chicó... Mas duvido que Deus e Nossa Senhora desgrudem do homem assim que ele garrar numa boa conversa. Já quanto ao Chifrudo, consta que passou a cuidar pessoalmente da cultura brasileira, e que, em breve, patrocinará o roqueiro Tico Santa Cruz em sua nova carreira de escritor, com entrevistas no Jô e na Marília Gabriela, além de menções honrosas na novela das nove. 

Ariano perdeu, enfim, para "Caetana", a irremediável. Azar o nosso, que não o soubemos reter e que, infiéis e inconstantes, já na semana que vem o trocaremos por um assunto, assim, mais novo e palpitante. Eis a nossa triste sina: a de, escravos do tempo, lidarmos sempre muito mal com os mensageiros do eterno...

terça-feira, 20 de maio de 2014

Safatle e o novo. De novo.


"A Providência anda devagar, mas o diabo sempre urge." (John Randolphe Roanoke)

E Safatle propõe o novo. E se Safatle e o PSOL são "o novo", eu sou o Papa. 

Safatle, eu sei o que você fez no verão passado. Essa idéia do "novo" em política é mais velha do que a coleção de LPs da Inezita Barroso. Ela só emociona os incautos. 


As propostas do "novo" em política - A Nova Ordem, o Novo Homem, a Nova Sociedade - sempre, sempre mesmo, resultaram em carnificina. A política é a arte da prudência, como nos ensina Russell Kirk. É o respeito pela tradição e pelas lições do passado. A verdade não nasceu ontem. Veritas filia temporis.



Mas Safatle propõe o novo. De novo. Ele julga representar uma esquerda pura, a verdadeira, enfim, e pede-nos mais um voto de confiança. Imagina termos esquecido que, antes dele, tantos já ecoaram a mesma ladainha; tantos já se colocaram como representantes do novo contra as velharias e sobrevivências do passado. Stálin e Trótski viviam dizendo representar o novo e a "verdadeira" revolução, acusando-se mutuamente de "reacionários". A querela foi encerrada com o irrefutável argumento da picareta. É sempre assim.



Não existem soluções e sínteses definitivas em política. A política é uma dialética interminável, um exercício de convivência dos heterogênos e contrários. É um campo de perpétua coetaneidade. Não há, neste espaço negociado, "passado" e "futuro". Não há Era de Aquário. Não há panacéia. Não há, não pode haver, substituições irreversíveis. Como escreveu Edmund Burke, "a sociedade humana é um contrato entre os vivos, os mortos e os que estão para nascer." Não há posição privilegiada, fora do tempo e do espaço, de onde se possa julgar o avanço ou atraso, o arcaísmo ou vanguardismo, das posições políticas alheias. Nada pode ser mais trágico do que a aplicação de uma linguagem estética à política. 



Mas Safatle propõe o novo. Pensa que vai nos fisgar com o palavrório fluido e estetista de maio de 1968, com essa mistura perniciosa entre política e arte. Até parece, mangão. Conheço bem esse papo de "let a thousand flowers bloom". Sei bem onde termina o "sin perder la ternura jamás". Aprendi que o lirismo meloso dos progressistas ergue-se sobre uma pilha de cadáveres. Quando vais com o fubá, Safatle, já voltei com a broa.



Safatle recita "criatividade" e "novas experiências". E eu respondo: vai fazer experiências com as tuas negas, ô Vladimir. Largue de safatleza. Como sugeriu magistralmente o João Pereira Coutinho em recente entrevista:



"A política não é um luxo; não é uma actividade 'criativa', onde devemos esperar 'a imaginação ao poder'. A imaginação e a criatividade devem ser cultivadas noutras esferas da conduta humana. Na intimidade. No futebol. Nas artes. Na culinária. Mas a política lida com a vida de seres humanos. A primeira exigência que se deve fazer ao poder político é ele não confundir a vida de terceiros com as tintas que usamos numa tela. A segunda é ele não interferir com a forma como as pessoas, livremente, pintam a sua tela."

Eu tenho medo do novo, Safatle. Se tú és o novo, então, tenho pânico. Vade retro com tua vanguarda e tua criatividade. 

terça-feira, 8 de abril de 2014

Parla!


Em Brasília, defronte ao palácio do Planalto, eis que um objeto imenso, de cor escura, com não menos que 5 metros de altura por 5 de largura, repousa sobre uma vasta base de mármore de carrara. Vê-se de longe aquela grande e imponente massa negra, que desponta no horizonte qual um escotoma no campo visual de quem olha para a vastidão do planalto central. 


Os que do vulto se aproximam notam de imediato a consistência plasmática, apenas para, ato contínuo, discernir a variedade de tons, do amarronzado ao negro, passando pelo cobre. Tais propriedades que à visão se apresentam, não obstante, chegam atrasadas em relação ao que permite averiguar o olfato - o cheiro forte, nauseabundo, acre, já não deixa margens para dúvidas: trata-se de um pitolô de cocô, um genuíno e colossal cagalhão.


Na placa de mármore sobre a qual descansa a greda, dizeres informam tratar-se de uma obra de arte, de autoria do presidente honorário Luís Inácio Lula da Silva. E ali, em letras garrafais, lê-se o seguinte: O MINISTÉRIO DA VERDADE INFORMA QUE A PRESENTE ESCULTURA SUPERA, EM TERMOS DE BELEZA, HARMONIA, ENGENHO E GRANDIOSIDADE, O DAVID DE MICHELANGELO.

Depois de um momento inicial de escândalo - natural quando nos deparamos com peças de vanguarda artística, garantem os especialistas -, um crítico de arte, em entrevista ao Fantástico, sedimenta a opinião pública definitiva a respeito da matéria:



"As pessoas tendem a reagir mal diante de inovações artísticas, sobretudo quando o artista é alguém famoso e celebrado em outro ramo de atividade. Veja bem, dizer que a obra do digníssimo presidente honorário supera o David de Michelangelo talvez soe como exagero para críticos mais conservadores, mas o que importa é que toda obra de arte tem o seu valor e a sua importância histórica. Há ainda muito preconceito elitista contra artistas novos, sobretudo aqueles que, vindo do povo, como o presidente Lula, ousam desafiar os cânones da assim chamada [e o crítico faz o gesto de aspas com os dedinhos] alta cultura."


E assim foi que o extraordinário monte de bosta converteu-se em patrimônio histórico e artístico nacional, atestado pelo IPHAN. Hordas de peregrinos vão, diariamente, apreciar e reverenciar esse monumento à cultura brasileira. O único inconveniente é ter de disputar espaço com milhares de moscas varejeiras subitamente aficcionadas por arte moderna...


quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Censura Voluntária

“Temos censura que não tivemos nem na ditadura”, afirma o ator Antônio Fagundes em entrevista à Isto É[1]. O Brasil vive, de fato, um momento espantoso, embora não de todo surpreendente para quem esteve atento nos últimos dez anos. A liberdade de expressão e de opinião está a um passo do cadafalso. E não, o problema maior nem é o partido que nos governa e os seus anseios de submeter os meios de comunicação ao seu jugo. Tal pulsão ditatorial existe e preocupa, é claro, mas gostaria de tratar aqui da sociedade como um todo, e não dos donos do poder, que poderiam menos caso encontrassem uma cultura madura e capaz de resistir a fantasias tirânicas, o que definitivamente não é o caso.
Os sinais de sufocamento das liberdades são muitos e alarmantes, a começar por este inacreditável “Procure Saber”, movimento liderado por artistas que uma sociedade sem parâmetros transformou em ídolos sacrossantos, e que agora almejam, com escandalosa sem-cerimônia, censurar biografias, um gênero literário já tão escasso no país.
Há também um clima generalizado de patrulha politicamente correta, que estimula reações histéricas e processos, como o que foi movido recentemente contra o humorista Danilo Gentili por uma senhora melindrada. A jornalista Rachel Sheherazade, por sua vez, teve sua cabeça pedida por organizadores de uma petição que exigia – como quem reivindica um direito natural inalienável – a sua demissão da emissora em que trabalha, além de pedidos públicos de desculpas. O delito? A jovem jornalista fez críticas aos ativistas dos direitos dos animais que invadiram e depredaram o Instituto Royal. Parecia até que quem cometera crimes fora aquela, e não estes.
Outro caso chocante ocorreu na Flica (Festa Literária Internacional de Cachoeira), na Bahia, onde estudantes e membros do movimento negro impediram à força – sem que os organizadores do evento demonstrassem firmeza para os coibir – as falas dos intelectuais e articulistas Luiz Felipe Pondé e Demétrio Magnoli. Os jovens censores, agindo como os “comissários do povo” dos tempos de Stálin ou Mao Zedong, chegaram a se despir (o que, hoje, é a forma mais elevada de protesto que aquelas cabecinhas ocas são capazes de conceber) e jogar uma cabeça de porco no palco. A intenção era clara: marcar como párias os dois palestrantes, afirmando que a eles não se deve dar o direito à palavra, uma vez que as suas opiniões excluem-nos do rol de homens respeitáveis, quiçá da espécie humana (e rótulos difamatórios tais como “reacionário”, “burguês” e “racista” servem precisamente à desumanização e dessubjetivação do outro). Os organizadores da Flica, ao que parece, aquiesceram.
E, por último, mas não menos importante, temos a ombudsman da Folha de São Paulo, Sra. Suzana Singer – irmã de André Singer, porta-voz da Presidência da República no primeiro governo Lula e petista de carteirinha –, chamando o seu colega, o jornalista e blogueiro Reinaldo Azevedo, de “rotweiller”, e, na prática, reprovando a sua contratação como colunista do jornal. A não ser por um desejo de lançar um estigma sobre o colunista – uma cabeça de porco retórica –, prevenindo os leitores da Folha para que não o lessem, a agressividade da ombudsman não se explica.
Como se não bastasse, a jornalista Miriam Leitão decidiu escrever um texto – clamando, pasmem!, por um debate de alto nível – no qual dava total apoio à ofensa destemperada da Sra. Singer. “Recentemente, Suzana Singer foi muito feliz ao definir como ‘rottweiller’ um recém-contratado pela ‘Folha de S. Paulo’ para escrever uma coluna semanal”, lê-se no artigo.
O texto lamentava a “miséria” e o “emburrecimento” do debate público brasileiro, imputados à atuação tanto de radicais de esquerda quanto de direita. No entanto, adotando uma posição pretensamente equilibrada e centrista (que eu costumo chamar de meiotermismo dogmático, o fetiche pelo meio-termo, ainda que entre o certo e o errado, o justo e o injusto, as vítimas e os agressores), a Sra. Leitão logo deixou para lá os radicais de esquerda – que, no texto, ela chama de “suposta esquerda”, como quem sugere que uma esquerda verdadeira, não “suposta”, jamais agiria daquela maneira radical (e ora me pergunto em que planeta ela esteve durante todo o século XX) –, preferindo concentrar os ataques no que qualificou de “direita hidrófoba”. O rótulo pejorativo referia-se, sem que autora citasse os nomes, a Reinaldo Azevedo, mas também ao economista, e articulista do Globo e da Veja, Rodrigo Constantino, autor do recém-lançado A Esquerda Caviar (Rio de Janeiro: Record, 2013). Por já ter dado umas boas lições de economia à Sra. Leitão, e também por haver criticado o seu pueril entusiasmo feminista diante da escolha de uma mulher para comandar o FED, Constantino foi alvo do rancor da jornalista, que o qualificou como “um desses articulistas que buscam a fama.”
Se, como os censores da Flica, a Sra. Langer jogara a sua cabeça de porco no palco midiático, a Sra. Leitão, por sua vez, optou por se despir também como aqueles, revelando toda a sua intolerância e espírito policialesco.
Todos os casos acima elencados sucederam-se no intervalo de não mais do que duas semanas. Se seguirmos nesse ritmo, 1984 é logo ali.
George Orwell, aliás, autor da célebre obra de denúncia aos métodos totalitários soviéticos, identificou um problema semelhante ao nosso entre os jornalistas e formadores de opinião na Inglaterra do seu tempo, muitos deles simpáticos ou, no mínimo, silenciosos em relação ao que se passava na URSS. Destacando o papel que a decadência da linguagem pública – lá, como aqui, engessada por veladas adesões ideológicas, afetações de bom-mocismo e crises agudas de meiotermismo dogmático – desempenhava na política, Orwell não poupou os seus contemporâneos – as Suzanas Singers e Mirians Leitões da época – de duras críticas. O quadro que ele descreve em “A Liberdade de Imprensa” (1945), prefácio original escrito para A Revolução dos Bichos, é lobregamente familiar:  


“O fato sinistro em relação à censura literária na Inglaterra é que ela é, em grande medida, voluntária. Ideias impopulares podem ser silenciadas, e fatos inconvenientes mantidos no escuro, sem a necessidade de uma proibição oficial. Quem morou muito tempo num país estrangeiro saberá de exemplos de notícias sensacionais – coisas que por seus próprios méritos ganhariam grandes manchetes – que ficaram de fora da imprensa britânica, não porque o governo interveio, mas devido a um acordo tácito geral de que ‘não seria conveniente’ mencionar aquele fato em particular.”

Como, lendo isso, não lembrar do empenho da nossa imprensa em, primeiro, ocultar a existência do Foro de São Paulo, e depois, quando isso já não era possível, minimizar a sua importância? Mas Orwell não para por aí. Linhas adiante, é como se falasse de nós: 


“Em qualquer momento dado, há uma ortodoxia, um corpo de ideias que se supõe que todas as pessoas bem pensantes aceitarão sem questionar. Não é exatamente proibido dizer isso ou aquilo, mas é ‘impróprio’ dizê-lo, assim como na época vitoriana era ‘impróprio’ mencionar calças na presença de uma senhora. Quem desafia a ortodoxia dominante se vê silenciado com surpreendente eficácia. Uma opinião genuinamente fora de moda quase nunca recebe uma atenção justa, seja na imprensa popular ou nos ditos periódicos cultos (...) Desde que o prestígio da União Soviética não esteja envolvido, o princípio da liberdade de expressão tem sido razoavelmente mantido. Há outros temas proibidos (...), mas a atitude predominante em relação à União Soviética é o sintoma mais grave. É como se fosse espontânea e não se devesse à ação de nenhum grupo de pressão (...) A intelligentsia literária e científica, as próprias pessoas que deveriam ser os guardiões da liberdade, começa a desprezá-la, tanto na teoria como na prática.”

Orwell não estava sozinho. A escritora britânica e prêmio nobel de literatura Doris Lessing – nascida, de fato, no Curdistão, e criada na Rodésia (atual Zimbábue) – também denunciou essa espécie de totalitarismo difuso, que ela associava então à emergência do “politicamente correto”. Autora, entre outros livros, de A Canção da Relva, uma sutil obra-prima contra o racismo onipresente na sua bem conhecida África Austral (lembrando que Lessing foi banida da Rodésia e da África do Sul por sua oposição ao apartheid), ela escreveu um vigoroso ensaio-denúncia intitulado, sem mais, “Censura”.
Parecendo dar razão à opinião de Antônio Fagundes, Lessing comenta naquele ensaio: 


“A censura direta e não ambígua, como parte do controle estatal, é mais fácil de combater do que os resultados indiretos dela (...) Há certas épocas e espaços em que fazemos conluio com a tirania, de maneiras mais diretas do que simplesmente não notar o que se passa (...) Uma coisa chocante: mas todos temos censores internos, e frequentemente não suspeitamos disso. É difícil escapar de um modo predominante de pensar, particularmente quando você está convencido de viver numa sociedade livre (...) A mais poderosa tirania mental naquilo que chamamos de mundo livre é o Politicamente Correto, que é tanto e imediatamente evidente, observado em toda parte, quanto invisível, qual um gás venenoso, pois suas influências estão frequentemente distantes da fonte originária, manifestando-se como uma intolerância generalizada (...) O problema é que as pessoas que precisam da rigidez, dos dogmas, das ideologias são sempre as mais estúpidas, portanto o Politicamente Correto é uma máquina auto-perpetuadora de afastar os inteligentes e os criativos. Ele está formando uma classe de pessoas – pesquisadores, jornalistas, educadores em particular – exiladas em sua própria cultura, por vezes mantidas em empregos inferiores, ou mesmo desempregadas, e, no entanto, elas são frequentemente as melhores, as mais inovadores, as mais flexíveis (...) As intolerâncias religiosas foram sucedidas pelo comunismo, o seu reflexo no espelho, que armou o palco para o Politicamente Correto. O que vem a seguir?”

Não sabemos. Mas o fato é que, salvo raras e honrosas exceções, os formadores de opinião no Brasil – alguns por fanatismo ideológico, outros por dinheiro, outros ainda por pura covardia – têm criado uma verdadeira “máquina auto-perpetuadora” contra opiniões diversas e independentes. A censura é, em larga medida, “voluntária”, no sentido denunciado por Orwell. Sendo assim, o antigo projeto do partido governante de controlar a imprensa – com essa tão sonhada “lei dos meios” – periga restar desnecessário, uma vez que profissionais como a Sra. Miriam Leitão, e muitos outros da mesma cepa, parecem ter se oferecido docemente como fiscais das opiniões de seus pares.
Fagundes está certo. Se, durante a ditadura, tínhamos uma censura autoritária e visível (frequentemente burlada, como muitos artistas e jornalistas da época já cansaram de confessar, até com certa graça), hoje temos uma censura totalitária, invisível, grave, onipresente. Ela não comporta gracejos nem brechas. Se, antes, ela vinha exclusivamente do governo, hoje ela é mais de tipo soviético-chinês, e o censor pode estar ao lado. No fim das contas, a verdade é que, como concluiu Lessing, “os amantes da autoridade, não importa o quão cruel, estarão sempre entre nós.”




[1]http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/322981_TEMOS+CENSURA+QUE+NAO+TIVEMOS+NEM+NA+DITADURA+

* Este artigo foi publicado também na revista Vila Nova: http://revistavilanova.com/censura-voluntaria/

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

"Só a política salva": ensaio sobre a religião da Intelligentzia (e da Burritzia também)



"Só a política salva", diz a deputada do PSOL com a boca na botija (ver aqui). O dinheiro desviado não era para ela, mas para a ação política. E a ação política, sabe-se, é sagrada.
É claro que a senhora Janira Rocha, a deputada em questão, não tirou isso de sua própria cabecinha. O caminho percorrido até que essa ideia pudesse ser dita assim de maneira tão explícita foi pavimentado por muitos intelectuais e apóstolos da política como religião. De fato, a ideia atravessa toda a nossa história contemporânea, desde, pelo menos, o século XVIII. A fala da deputada confirma a acertada previsão de Ludwig Feuerbach - que marcaria tragicamente todo o século XX - de que a política tornar-se-ia a nova religião. 
Pretendo, nesse artigo, analisar a origem daquela ideia e por que ela teve sempre no Cristianismo o seu maior obstáculo.
* * *
A revolta contra a transcendência não pode deixar de produzir substitutos. "O homem acredita quer num deus, quer num ídolo. Não há uma terceira opção!", dizia Max Scheler (1960: 399).
A Revolução Francesa parece ter confirmado a verdade daquele axioma. Ali, de maneira quase caricata, elementos centrais da doutrina e da missa cristãs foram parodiados e convertidos em exóticos cultos seculares. Tendo lugar em catedrais como a Notre Dame, os cultos iam desde batismos e catecismos cívicos até prostrações penitentes diante da "Santa Igualdade" ou da "deusa Razão" (cf. Lehmann da Silva 1985: 25). Uma nova religião, tendo a razão humana como divindade e os Philosophes como apóstolos, surgia no horizonte como uma aurora de esperança e redenção.
Em O Antigo Regime e a Revolução, Alexis de Tocqueville já notara o caráter de religião substitutiva da Revolução Francesa (Toqueville 1856). Segundo o pensador francês, ao contrário do padrão de usual de revoluções civis e políticas – que implicam sempre uma pátria ou território nos quais se encerram –, a Revolução Francesa não teve um território próprio e, mais do que isso, o seu efeito foi apagar do mapa todas as antigas fronteiras. Acima de todas as nacionalidades, ela formou uma "pátria intelectual comum", da qual os homens de todas as nações podiam tornar-se cidadãos. Como escreveu Carl Becker a respeito dos guias espirituais da Revolução: "Os Philosophes demoliram a Cidade de Deus, de Santo Agostinho, apenas para reconstruí-la com novos materiais." (Becker 1932: 31)
Não havia nos anais da história, segundo Tocqueville, uma única revolução política com as mesmas características da Revolução Francesa. Estas ter-se-iam observado apenas em revoluções religiosas. Por isso, Tocqueville achava que era às revoluções religiosas que a Revolução Francesa deveria ser comparada se se pretendesse captar a sua substância e essência. Em suas palavras:
"A revolução francesa é, pois, uma revolução política que operou à maneira, e assumiu o aspecto, das revoluções religiosas. Note-se por quais traços particulares e característicos ela veio a parecer-se com as últimas: ela não apenas se difunde como aquelas, mas, como elas, penetra por meio da pregação e da propaganda. Uma revolução política que inspira o proselitismo." (Tocqueville 1856: 40)
O componente religioso da Revolução – a pregação, a propaganda, o proselitismo – ficou ao encargo dos Philosophes, que desejavam pôr fim à antiga religião francesa (o Catolicismo) ou, ao menos, purificá-la à maneira dos milenaristas medievais. Com suas próprias mãos (e com as penas que nelas traziam), eles pretenderam fazer da cidade dos homens uma cidade celeste, substituindo, nos termos de Agostinho, o "amor a Deus" pelo "amor próprio".
A maior parte dos Philosophes tinha plena consciência de sua tarefa de substituir os antigos sacerdotes religiosos na função de conduzir a humanidade rumo a um paraíso, neste caso, terreno. Sendo os mais novos protagonistas do que Dumézil chamou de "casta sacerdotal" - correspondendo também ao sentido amplo que Julien Benda conferiu à palavra "clerc" (clérigo) -, eles passaram a elaborar os princípios abstratos e os valores transcendentes substitutivos – "razão", "igualdade", "vontade geral" – necessários à instituição daquilo que Rousseau chamou de religião civil (Rousseau 1762[1834]: cap. 8). 
Um dos mais importantes princípios abstratos do Iluminismo francês foi, certamente, a razão. Este fetiche iluminista vinha ocupar o lugar da graça cristã na nova doutrina espiritual. Ninguém menos que Diderot afirmou-o no verbete "Philosophe" da Encyclopédie: "a razão é, para o filósofo, aquilo que a graça é para o cristão. A graça impele o cristão a agir, a razão impele o filósofo." (apud. Himmelfarb 2004: 152). 
Logo, tratava-se para os Philosophes de assumir as funções sacerdotais outrora exercidas pela religião tradicional, considerada, a partir de então, uma espécie de rival da emergente "religião da humanidade". Mais do que um protesto contra o caráter opressor e autoritário da instituição clerical francesa da época – que também teve o seu papel –, a ojeriza daqueles intelectuais frente ao Cristianismo explica-se melhor, portanto, por uma questão de rivalidade espiritual e disputa pela alma dos homens.
No seu livro, Tocqueville comenta que "dentre as paixões que nasceram daquela Revolução, a primeira a se acender, e última a se extinguir, foi a paixão irreligiosa." (Tocqueville 1856: 31). Tal "paixão irreligiosa" significava, na prática, um profundo anticristianismo por parte dos Philosophes. E se, à exceção de Condorcet, a maioria daqueles intelectuais já havia morrido quando a Bastilha veio ao chão, a verdade é que suas idéias inspiraram a violência revolucionária contra membros de igrejas, conventos e mosteiros franceses. Obras como A Religiosa, de Diderot, viriam a provocar um efeito explosivo naquele verão de 1789.
Como mostra Jean Dumont em A Revolução Francesa e os Prodígios do Sacrilégio (cf. Dumont 1984: 187-335), as primeiras manifestações violentas das turbas revolucionárias voltaram-se inicialmente não contra nobres e aristocratas, mas contra bispos, arcebispos, padres e freiras:
"A primeira manifestação de violência revolucionária foi reservada à Igreja. No início do verão de 1789, esta violência não havia em absoluto visado o rei ou os aristocratas, mas, desde os dias 24 e 25 de junho, o bispo de Beauvais, deixado num estado semi-inconsciente, e o arcebispo de Paris (...) que, apedrejado, escapou com vida graças à agilidade dos cavalos de sua carruagem (...) Megeras e trabalhadores braçais, após forçarem a entrada dos conventos, lançaram-se sobre as religiosas, agredindo-as e flagelando-as até arrancar-lhes sangue, e durante horas a fio. Assim foram tratadas as Visitandinas (dois conventos), as Recoletas, as Filhas do Precioso Sangue, as Filhas do Calvário, as Filhas da Santa Genoveva, e as Filhas da Caridade..." (Dumont 1984: 203-204)
Os Philosophes não foram revolucionários políticos. Não eram republicanos, nem tampouco pretenderam destruir a monarquia ou a classe aristocrática (cf. Himmelfarb 2004: 149-187; Dumont 1984: 188-197). Como se sabe, muitos deles - como, por exemplo, Diderot e Voltaire - defendiam um "despotismo esclarecido" (expressão da época, aliás, e não uma criação posterior de historiadores). Havia nessa defesa muito de gratidão e interesse pessoal. Afinal, os Philosophes costumavam ser paparicados, festejados, consultados e mesmo financiados por monarcas europeus. "Como resistir a um rei vitorioso, poeta, músico, filósofo, e que, ainda por cima, parece adorar-me?", questionava-se Voltaire, referindo-se a Frederico II, rei da Prússia. O mesmo poderia ter perguntado Diderot a respeito de Catarina da Rússia. 
Mas, para além do encanto dos iluministas parisienses com aqueles monarcas (e vice-versa), havia um significativo princípio filosófico por trás da apologia do despotismo esclarecido. Como afirma Gertrude Himmelfarb, o despotismo esclarecido, do ponto de vista dos intelectuais franceses, era uma tentativa de entronizar a razão, corporificada na pessoa de um déspota a ser "esclarecido", justamente, pelas luzes dos Philosophes. (cf. Himmelfarb 2004: 163). Era uma troca, uma aliança entre o poder político-militar e o poder "clerical" (no sentido de Benda).
Assim, se os Philosophes ansiavam por algum tipo de revolução, esta não dizia respeito à estrutura político-social da França do século XVIII, mas à estrutura espiritual da nação. "As revoluções se fazem nos espíritos antes que nas coisas", dizia Albert Mathiez, historiador marxista da Revolução Francesa (apud. Dumont 1984: 187).
A distinção entre duas revoluções ocorrendo no interior da Revolução – uma revolução religiosa ("nos espíritos"), inspirada diretamente pelos Philosophes, e uma revolução política ("nas coisas"), que teve menos relação com as suas idéias – explica-se, em larga medida, pelas características particulares assumidas pelo Iluminismo francês, que o distinguia, por exemplo, do Iluminismo britânico. Tocqueville descreveu bem a diferença:
"Enquanto, na Inglaterra, aqueles que escreviam sobre o governo e aqueles que governavam estavam misturados - os primeiros introduzindo na prática as novas idéias, os últimos ajustando e circunscrevendo as teorias em função dos fatos -, na França, o mundo político restava como que dividido em duas províncias separadas e incomunicáveis. Na primeira, administrava-se; na segunda, estabeleciam-se os princípio abstratos sobre os quais toda a administração deveria se fundar. Aqui, eram tomadas as medidas particulares indicadas pela rotina; lá, eram proclamadas as leis gerais, sem que jamais fossem levados em conta os meios pelos quais aplicá-las: a uns, a condução dos negócios; aos outros, o direcionamento das inteligências." (Tocqueville 1856: 244-245 – grifos meus).
Era certamente num "direcionamento das inteligências" – ou, poder-se-ia dizer, numa condução espiritual – que Voltaire parecia estar pensando quando escreveu a um amigo, em 1764:
"Tudo o que eu observo tem lançado as sementes de uma revolução que virá inevitavelmente, e que eu não terei o prazer de testemunhar. Os franceses sempre chegam atrasados, mas ao menos chegam. Gradativamente, as luzes se espalharam a tal ponto que irão irromper na primeira oportunidade, e então haverá grande comoção. As novas gerações têm sorte; elas testemunharão grandes feitos." (apud. Himmelfarb 2004: 181).
A nova constituição espiritual, que viria a fundar a ordem revolucionária emergente, elaborar-se-ia não apenas contra a Igreja, mas contra as bases constitutivas do Cristianismo. Para os iluministas franceses, o Cristianismo era nada menos que uma religião torpe. Mesmo Voltaire – que nunca foi um materialista ateu como d‘Holbach, Helvétius ou Lamettrie, demonstrando, ao contrário, uma devoção deísta a uma divindade sobrenatural – mostrou-se extremamente combativo ao Cristianismo, ainda que, até a década de 1760, ele tenha atenuado a sua retórica anticristã ocultando-a sob a aparência de mero anticlericalismo. Como explica Peter Gay:
"Voltaire trabalhou em silêncio, cultivou a sua raiva, e esperou – ele podia esperar. Entrementes, mascarou publicamente a sua fúria anticristã como sincero anticlericalismo. Foi apenas muito mais tarde, por volta de 1760, que Voltaire rejeitou toda transigência e jogou fora muito de sua cautela. Acontecera muita coisa, tanto com o movimento quanto com ele. Escritores radicais foram perseguidos, e Enciclopedistas dedicados sofreram constrangimentos; a era da cruzada anticristã acelerou-se." (Gay 1966: 390)
Voltaire acreditava que a destruição do Cristianismo era mais importante do que a construção de uma religião substitutiva. À questão sobre o que seria posto no lugar da velha religião, ele respondia: "O quê? Um animal feroz suga o sangue de minha família; eu digo que é preciso livrar-se da besta e me perguntam o que se deve pôr no lugar?" (cf. Gay 1966: 391).
Foi por aquela época, em torno de 1760, e com objetivo de "livrar-se da besta", que Voltaire começou a usar o célebre "Écrasez l'Infâme" ["Esmagar a Infame"] como assinatura pessoal, ao final de cartas e artigos. Tratava-se de um eficaz apelo aos brios dos combatentes da cruzada anticristã. Por tudo isso, Voltaire foi homenageado por Diderot, que, em 1762, chamou-o de "sublime, honorável e estimado anti-Cristo". Nas palavras de Gay: 
"Nenhum epíteto seria mais adequado: uma simples visada na corrente de panfletos que jorrou de Ferney nos últimos dezesseis anos da vida de Voltaire revela um asco pelo Cristianismo beirando quase a obsessão. Intérpretes que restringem 'a infâmia' à intolerância, ao fanatismo, ou ao Catolicismo romano recusam uma conclusão à qual o próprio Voltaire chegara naqueles anos frenéticos: era de se esperar que todo homem sensato e honrado nutrisse verdadeiro horror à seita cristã (ibid.)."
A rejeição iluminista ao Cristianismo resultava de algumas características fundamentais deste último, que contrariavam fortemente o conteúdo espiritual da religião dos Philosophes. Em primeiro lugar, o Cristianismo é uma religião universalista (no sentido de não respeitar fronteiras socioeconômicas), ao contrário da religião dos Philosophes, que era essencialmente elitista. Em segundo lugar, o Cristianismo é uma religião associal, que transcende o domínio do sócius e da "cidade", enquanto a religião dos Philosophes era essencialmente civil e social. E, por último, o Cristianismo é uma religião que fala ao indivíduo concreto em sua relação com a Eternidade, ao passo que a religião dos Philosophes era uma religião da espécie, ou do homem abstrato (hipostasiado pelo Philosophe ele próprio) em sua relação com a posteridade - "a posteridade é, para o filósofo, aquilo que o outro mundo é para o homem religioso", escreveu Diderot em carta ao amigo Étienne M. Falconet (Diderot 1766[1834]: 224). Estas diferenças devem ser analisadas com mais detalhes.
Quando Voltaire dizia que "era de se esperar que todo homem sensato e honrado nutrisse horror pelo Cristianismo", ele não estava pensando nas pessoas comuns. Estas, aos olhos de Voltaire e outros eminentes Philosophes, não tinham como ser sensatas, nem honradas, graças à sua condição de prisioneiras da ignorância e da superstição, traços que os iluministas consideravam essenciais à religião tradicional. Na apresentação da Encyclopédie, obra tida como instrumento para a construção de uma era "filosófica" ou "racional", Diderot deixava claro que a massa das pessoas comuns não faria parte da tal era. "A massa genérica de homens não foi feita para promover, e sequer compreender, esta marcha progressiva do espírito humano", dizia (apud. Himmelfarb 2004: 154). No verbete "Multitude", o enciclopedista foi ainda mais explícito em seu desprezo pelas massas:
"Desconfie do julgamento da multidão em matéria de raciocínio e filosofia; sua voz é a da malícia, da tolice, da desumanidade, da irracionalidade e do preconceito (...) A multidão é ignorante e confusa (...) Desconfie de sua moral; ela não é capaz de produzir ações fortes e generosas; ela é mais admirada que aprovada. O heroísmo é quase uma loucura a seus olhos." (Diderot 1778: 522)
Para Diderot, a população comum era "imbecil" (imbécile) em termos de religião. Enquanto a superstição nacional, segundo o Philosophe, estava à época decaindo, este bem-vindo desenvolvimento dificilmente chegaria até "o populacho" (la canaille, como diziam de modo geral os iluministas franceses). O povo (le peuple) era por demais "idiota, bestial, miserável e ocupado" para se auto-iluminar. Não havia grandes esperanças: "A quantidade de canaille mantém-se sempre mais ou menos estável." Por isso, Diderot acreditava que a multidão carecia – e careceria sempre – de uma religião repleta de rituais e fábulas infantis, como seria o Cristianismo. 
De fato, a religião da razão era para poucos. Jamais poderia ela oferecer o encanto e a ilusão que, segundo os intelectuais franceses, tanto agradavam à canaille. As luzes estavam restritas a um pequeno grupo, uma "igreja invisível" -  assim Diderot o qualificava - cujos membros eram detentores de uma gnose libertadora (cf. Gay 1969: 519-520). Concordando com Diderot, Voltaire dizia que l'Infâme não era para "os homens respeitáveis". Destinava-se à "canaille, para quem fora feita." "Jamais tivemos a pretensão de levar as luzes a sapateiros e serviçais", afirmava Voltaire, deixando clara a diferença entre a religião dos Philosophes e o Cristianismo, "este é um trabalho para os apóstolos." (apud. Gay 1969: 521)
A segunda importante diferença entre o Cristianismo e a religião dos Philosophes diz respeito às relações entre a religião e a "cidade" (ou, em outras palavras, a esfera da sociedade política). O leitor deve recordar que, no início, eu fiz referência às formulações de Tocqueville e Carl Becker a respeito de uma espécie de "cidade dos Philosophes", ou seja, uma comunidade espiritual que unia os intelectuais franceses na "igreja invisível" de Diderot. A metáfora da cidade é muito importante aqui, remetendo-nos à polêmica de Santo Agostinho com pensadores e estadistas pagãos, motivo pelo qual o bispo de Hipona escreveu A Cidade de Deus.
O objetivo inicial de Agostinho era responder àqueles que culpavam a recente cristianização do Império Romano – recorde-se que Constantino se convertera por volta do ano 312 d.C. – por sua decadência. Na obra, o filho de Santa Mônica argumenta que, para além da diversidade observável de nações, línguas e culturas humanas, a divisão mais fundamental no seio da humanidade é aquela entre os dois grupos que ele chamou, então, de "a cidade de Deus" e a "cidade dos homens".
É significativo que Agostinho tenha se valido de um conceito que servia para delimitar uma unidade política específica, a cidade, para descrever os dois grupos. Sendo um dos primeiros pensadores a refletir sobre o tema da sociedade civil na nova situação histórica surgida com a emergência da religião revelada, Agostinho achou por bem utilizar o vocabulário clássico da ciência política – que começara com Platão, passara por Aristóteles, e chegara ao mundo latino através de Marco Túlio Cícero – com o qual ele e os seus contemporâneos estavam familiarizados.
Mas, empregando uma mesma terminologia, Agostinho conferiu-lhe um sentido inteiramente novo, uma vez que a sua distinção entre os dois tipos de "cidade" era escatológica, e não política. Para a doutrina agostiniana, toda sociedade política inclui necessariamente membros das duas cidades. Nenhuma sociedade ou instituição visível poderia identificar-se exclusivamente com qualquer uma delas. Trata- se, para Agostinho, de uma distinção entre aqueles que estão e aqueles que não estão destinados à vida eterna junto a Deus, e não uma distinção entre membros e não- membros de uma determinada configuração sociopolítica. Os membros das duas cidades estão misturados naquilo que o Santo chamou de saeculum, o reino da existência temporal no qual tem lugar a arte da política.
No Livro VI de A Cidade de Deus, Agostinho expõe e refuta a doutrina de Marcus Varro, pensador romano que propusera uma divisão no campo da teologia em três subespécies: teologia mística, teologia natural e teologia civil. A "teologia civil", segundo Varro, "é aquela que os habitantes da cidade, e especialmente os sacerdotes, devem conhecer e pôr em prática. Ela contém informações sobre os deuses que devem ser adorados oficialmente..." (cf. Agostinho 2003: 235-236)
O objetivo de Agostinho em sua crítica a Varro era demonstrar precisamente a insensatez, da perspectiva cristã, de uma teologia ou religião civil, ou seja, de uma religião concebida em função da cidade. Varro representa no livro uma posição tradicional no mundo pagão, segundo a qual a cidade não poderia subsistir sem o seu componente sagrado, fundamento espiritual e força de coesão.
Recorde-se que Agostinho começou a escrever o seu opus magnum logo após a destruição e o saque de Roma pelos visigodos, em 410 d.C. Sua tentativa era a de responder às constantes críticas dirigidas ao Cristianismo pelos pagãos. Segundo estes últimos, o Cristianismo, adotado como nova religião de Estado, revelara-se de pouca serventia para a proteção do mesmo, sendo, em última análise, a causa de sua ruína. Refutando esse ponto de vista, por demais evidente para os seus contemporâneos, Agostinho argumenta que a verdade e o valor de uma religião não podem ser medidos por sucessos ou malogros em eventos mundano. Em suas palavras:
"O próprio Varro atesta que a razão para se escrever sobre 'assuntos humanos' antes dos 'assuntos divinos' era que as comunidades humanas vieram primeiro à existência, sendo as instituições divinas posteriores, e estabelecidas por aquelas. Mas não foi nenhuma comunidade terrena quem estabeleceu a verdadeira religião; a verdadeira religião, sem dúvida, foi quem estabeleceu a Cidade Celeste; e a verdadeira religião é concedida aos seus legítimos adoradores graças à inspiração e ao ensinamento do Deus verdadeiro, que lhes deu a vida eterna." (Agostinho 2003: 232)
Ora, a religião que os Philosophes pretendiam instaurar era precisamente a "falsa religião" criticada por Agostinho: uma religião instituída pelos homens em função da cidade; em suma, uma religião civil
Como se sabe, o último capítulo de O Contrato Social, de Rousseau, chama-se justamente "da religião civil" (Rousseau 1762[1834]: cap. 8). Ali, o filósofo genebrino dá prosseguimento à empreitada que, na teoria política moderna, começa com a tentativa de Hobbes de instituir uma teologia civil à la Marcus Varro, abolindo com isso a distinção agostiniana entre política e religião, uma vez que a primeira passaria, a partir de então, a englobar a última (cf. Strauss 1959[1988]: cap. 7; 1963).
Rousseau reconheceu sua dívida para com Hobbes, sugerindo apenas que o filósofo inglês não fora longe o suficiente, graças à sua fé no Cristianismo:
"De todos os autores cristãos, o filósofo Hobbes é o único a ter enxergado a doença e o remédio, o único a ter ousado propor a união das duas cabeças da águia, e de tudo remeter à unidade política, sem a qual nenhum Estado ou governo será jamais bem constituído. Mas ele deveria ter percebido que o espírito dominante do Cristianismo era incompatível com o seu sistema, e que o interesse do padre seria sempre mais forte que o do Estado." (Rousseau 1762[1834]: 153 – grifos meus). 
Mas o que Rousseau pareceu não notar à época é que Cristianismo do filósofo inglês já era uma versão, por assim dizer, secularizada. Bem antes do pensador genebrino, Hobbes já percebera o perigo que o Cristianismo representava para a autoridade política terrena. Em Do Cidadão, publicado nove anos antes de O Leviatã, ele perguntava: "O que pode ser mais pernicioso a qualquer Estado [commonwealth, no original] do que ter seus cidadãos impedidos de obedecerem a seus príncipes por medo de castigos eternos?" (Hobbes 1642[1998]: 135).
Rousseau não gostava do Cristianismo justamente por aquilo que, para Agostinho, constituía a força e a verdade únicas daquela religião. O Cristianismo era tudo menos uma religião da cidade e, portanto, não poderia fornecer as bases espirituais para o novo "contrato social" pretendido pelo Philosophe. Como ele próprio explicou, revelando preocupação análoga à de Hobbes: 
"Essa religião [o Cristianismo] não mantém qualquer relação particular com o corpo político (...) Longe de ligar os corações dos cidadãos ao Estado, desprende-os, como de todas as coisas da terra. Não conheço nada mais contrário ao espírito social." (ibid. p. 155)
A crítica de Rousseau ao Cristianismo prossegue também segundo termos semelhantes aos que, séculos antes, foram empregues por Maquiavel e, séculos depois, por Nietzsche. Em última análise, tratava-se de, contrariando a doutrina agostiniana e retomando a de Marcus Varro, avaliar a religião em função da cidade. 
[Nota: Em verdade, Nietzsche não estava interessado na ordem política. O seu problema não era a "cidade", e sim a restauração do vigor espiritual no ser humano. De todo modo, a soteriologia nietzscheana era também coletiva, a 'alma' da espécie humana, por assim dizer, tendo prioridade frente à alma individual.] 
Daquela perspectiva, o Cristianismo é usualmente avaliado como "fraco","espiritual", "escapista". Mesmo a idéia nietzscheana de uma "moralidade de escravos" já fora antecipada por Rousseau em seu ataque àquela religião: 
"O cristianismo é uma religião de todo espiritual, preocupada unicamente com as coisas do céu. A pátria do cristão não é deste mundo. É certo que ele cumpre o seu dever, mas fá-lo com uma profunda indiferença no que concerne ao bom ou mau êxito de seus cuidados. Uma vez que nada se lhe tenha a reprovar, a ele pouco importa irem as coisas bem ou mal aqui embaixo. Se o Estado floresce, o cristão mal ousa desfrutar da felicidade pública; ele receia orgulhar-se da glória de que goza o seu país; se o Estado perece, ele abençoa a mão de Deus que se abate sobre o povo (...) O cristianismo prega unicamente servidão e dependência. Seu espírito é bastante favorável à tirania, para que esta se não sirva com freqüência dele. Os verdadeiros cristãos são feitos para serem escravos; e eles o sabem e em hipótese nenhuma se amotinam; esta vida breve tem muito pouco preço aos seus olhos." (ibid. pp. 156-157 – grifos meus).
Depois de atacar o caráter antissocial do Cristianismo, Rousseau procurou estabelecer os princípios de uma religião adequada aos interesses da cidade. Sua religião civil nada mais é que uma atualização da teologia civil de Hobbes, apenas que, em lugar do soberano absoluto como centralizador dos poderes espiritual e temporal, Rousseau reserva à "vontade geral" o papel de absoluto, fonte de onde emana o poder soberano. A "vontade geral", mais do que a vontade de uma maioria, é algo como uma entidade superior, indivisível e infalível. Ela é um poder absoluto e transcendente ao corpo social. Ela é, enfim, um dos mais explícitos substitutos do Deus abraâmico de que se tem notícia. Como escreveu Albert Camus: "A vontade geral é, em primeiro lugar, a expressão da razão universal, que é categórica. Nasceu o novo Deus." (Camus 1951[1999]: 142).
Obedecendo à "vontade geral", o Estado, tal qual um deus encarnado, passa a ter o poder sobre a vida humana, tornada, assim, uma mera concessão pública (cf. Rousseau 1762[1834]: II, 5). Eis os princípios da religião civil rousseauniana:
"É conveniente ao Estado que cada cidadão possua uma religião que o faça amar os seus deveres; todavia, os dogmas dessa religião só interessam ao Estado e a seus membros enquanto se relacionam com a moral e os deveres que aquele que a professa é forçado a cumprir para com outrem (...) Há, pois, uma profissão de fé puramente civil cujos artigos compete ao soberano fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade, sem os quais é impossível ser-se bom cidadão ou súdito fiel. Conquanto não se possa obrigar ninguém a crer, pode-se banir do Estado quem neles não acreditar; pode-se bani-lo, não como ímpio, mas como insociável, como incapaz de amar sinceramente as leis, a justiça, e de imolar à necessidade a vida e o dever. E se alguém, depois de haver reconhecido publicamente esses mesmos dogmas, comporta-se como se os não aceitasse, que seja punido de morte, pois cometeu o maior dos crimes: ter mentido perante as leis. Os dogmas da religião civil devem ser simples, em pequeno número, enunciados com precisão, sem explicações nem comentários. A existência da Divindade poderosa, inteligente, benfazeja, previdente e providente, a vida futura, a felicidade dos justos, o castigo dos perversos, a santidade do contrato social e das leis: eis os dogmas positivos. Quanto aos dogmas negativos, reduzo-os a um único: é a intolerância, implícita nos cultos que excluímos." (Rousseau 1762[1834]: 158-159 - grifos meus)
Apesar de ter sido celebremente associada ao nome de Rousseau, a noção de "vontade geral" já havia sido desenvolvida por Diderot em seu verbete sobre "direito natural" na Encyclopédie (cf. Diderot 1777), a um esboço do qual Rousseau tivera acesso. No verbete sobre "economia", publicado naquele mesmo volume da Encyclopédie, Rousseau reconhecia a sua dívida, remetendo o leitor ao artigo de Diderot, que fora "a fonte deste grande e luminoso princípio" (cf. Rousseau 1777: 810) - o princípio da volonté générale.
As formulações de Diderot a respeito da noção servem para esclarecer a terceira grande diferença, mencionada anteriormente, entre o Cristianismo e a religião dos Philosophes - esta sacralizando a espécie humana em detrimento do indivíduo; aquele, enfatizando a relação do indivíduo com a eternidade. Escreveu Diderot:   
"As vontades particulares são suspeitas; elas podem ser boas ou más. Mas a vontade geral é sempre boa: jamais se equivocou, jamais equivocar-se-á (...) Quem quer que medite atentamente sobre o que precede, convencer-se-á que: 1) o homem que escuta apenas a sua vontade particular é o inimigo da espécie humana; 2) a vontade geral é, dentro de cada indivíduo, um ato de entendimento, que raciocina no silêncio das paixões, e que o homem pode exigir de seu semelhante, assim como este poderá exigir-lhe; 3) esta consideração da vontade geral da espécie, e do comum desejo, é a regra de conduta relativa de particular para particular dentro da mesma sociedade." (Diderot 1777: 384-385) 
Sem colocar tanta ênfase na razão quanto o colega, Rousseau também achava que a moralidade humana era essencialmente pública. Em lugar da consciência individual como lócus do juízo moral, ambos os Philosophes elevavam a volonté générale ao estatuto de fonte absoluta daquele juízo. Nesse sentido, prosseguiam eles, mutatis mutandis, as iniciativas de Maquiavel - e, mais tarde, de Hobbes - de circunscrever a moralidade humana ao domínio imanente da política. Se, para Maquiavel e Hobbes, o Príncipe ou Leviatã representavam o critério absoluto para a definição do bem e do mal – não havendo outro que lhes fosse superior –, para Diderot e Rousseau, este critério seria o da "vontade geral" soberana. 
Se, para Hobbes, o pecado mortal era a guerra civil – que representava o adoecimento do corpo político –, para Diderot e Rousseau o pecado mais grave é a desobediência civil, significando uma sublevação da vontade individual contra a vontade geral. "Se alguém, depois de haver reconhecido publicamente estes mesmos dogmas [da religião civil], comporta-se como se os não aceitasse", diz Rousseau, "que seja punido de morte, pois cometeu o maior dos crimes." Contra o pecado capital, aplique-se a pena capital.
A apologia iluminista do caráter público e civil da moral fica especialmente clara no tratamento que Rousseau dá à idéia de "compaixão" (pitié). Ao contrário dos moralistas britânicos, para quem a compaixão (compassion) era uma virtude social (isto é, uma qualidade natural dos indivíduos em sociedade), para o Rousseau do Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi les hommes, a compaixão aparece como um sentimento natural apenas no "estado de natureza". Ali, a compaixão contribuiria para a preservação da espécie humana, ao moderar a força do "amor a si" (l'amour de soi). No "estado de sociedade", ao contrário, a compaixão era substituída pelo nocivo sentimento de "amor próprio" (l'amour propre), uma degeneração do "amor a si", que destrói a liberdade e igualdade naturais, sujeitando a humanidade ao trabalho, servidão e miséria (cf. Himmelfarb 2004: 172-173).
Na novela Émile, Rousseau estabeleceu algum grau de "sentimento íntimo" como base não da compaixão, mas do "amor a si". Quando identificamo-nos com outra pessoa, escreveu o Cidadão de Genebra, e sentimos que estamos, em alguma medida, nessa pessoa, é para não sofrer que desejamos que ela não sofra. "Interesso-me por ela graças ao amor a mim." (Rousseau 1762b[1817]: 224, n. 15). 
E assim Rousseau formulou o seu princípio de justiça: "O amor aos homens derivado do amor a si: eis o princípio da justiça humana." (ibid.)
Como aponta Himmelfarb, as virtudes sociais não são dadas naturalmente a Emílio. Ele precisa aprendê-las ao envolver-se com pessoas menos afortunadas. Mas ele deve aprender também que "seu primeiro dever é para consigo próprio." Na obra, Emílio é instruído por seu tutor a exercer as virtudes sociais não em relação a indivíduos particulares, mas para com a "espécie", com o "conjunto da humanidade" (cf. Himmelfarb 2004: 173). Nas palavras de Rousseau:
"Para impedir que a compaixão degenere-se em fraqueza, é preciso generalizá-la, estendê-la a todo o gênero humano. Deve-se, portanto, e por amor a nós mesmos, ter compaixão para com a nossa espécie mais do que para com o nosso próximo." (Rousseau 1762b[1817]: 244 – grifos meus).
O "amor à espécie" acima do "amor ao próximo": eis a síntese perfeita do abismo que separa a religião dos Philosophes e o Cristianismo. Segundo Himmelfarb, não obstante as muitas diferenças entre Rousseau e os demais Philosophes, todos eles adotam um mesmo modus operandi: a tendência a generalizar as virtudes, a sobrepor o "conjunto da humanidade" ao indivíduo, a "espécie" ao próximo. O "bem comum dos homens", para Rousseau e os demais iluministas, era mais do que a simples soma dos bens dos homens individuais. E, sobretudo, "o bem comum dos homens" não significava o bem dos homens comuns (Himmelfarb 2004: 174)
Não há, em Émile, nenhuma menção ao homem comum, membro da canaille. Émile era de origem nobre, e sua educação estava a cargo de um preceptor particular. Já o homem pobre, para Rousseau, não carecia ser educado, pois sua condição fornecia-lhe uma educação compulsória, dispensando qualquer outra. Ao falar sobre educação pública no verbete "Économie", Rousseau não tinha em mente o ensino tradicional da matemática, ciências, literatura etc. Por "educação pública", referia-se ele à disciplina moral e social que o Estado deveria impor a jovens e crianças (Himmelfarb 2004: 174-175).
Rousseau acreditava que a educação era algo muito importante para ser deixada aos pais. "Não se deve abandonar às luzes e preconceitos dos pais a educação de seus filhos", dizia ele, "pois ela importa ao Estado mais que aos pais." E concluía: "O Estado permanece, e a família perece." (Rousseau 1777: 818).
Dentre os Philosophes, Rousseau foi talvez aquele que maior influência exerceu sobre os revolucionários de 1789. Tal influência deveu-se justamente à proposta de uma "religião civil", com todos os elementos doutrinários, ritualísticos e demiúrgicos que encerrava. Em 1793, por exemplo, municiado com a concepção rousseuniana de "educação pública", Robespierre apresentou à Convenção um plano de educação compulsória a ser adotado nas escolas, com o objetivo declarado de proteger as crianças da influência maligna de seus pais reacionários (cf. Himmelfarb 2004: 183).
Ecos da sacralização do Estado promovida por Rousseau podem ser observados também no famoso pronunciamento do abade Sieyès, O que é o Terceiro Estado?, divulgado às vésperas da Revolução, onde se lia: "A Nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, e ela é a própria Lei." (Sieyès 1789: 111). De modo similar, Robespierre declarou que "o povo sempre vale mais do que os indivíduos... O povo é sublime, mas os indivíduos são fracos." (apud. Himmelfarb 2004: 184)
Aos instaurar a "República da Virtude" (eufemismo para o Terror jacobino), Robespierre seguia a proposta rousseauniana de "fazer reinar a virtude", entendida como a "conformidade da vontade particular à vontade geral." (Rousseau 1777: 814). "Estou convencido", disse Robespierre a respeito de sua proposta educacional, "da necessidade de uma completa regeneração e, se posso me expressar assim, de criar um novo povo." (apud. Himmelfarb 2004: 185). Mais uma vez, o líder jacobino pretendia pôr em prática um sonho vislumbrado por seu mestre e "professor da humanidade", como Rousseau era por ele chamado (cf. Johnson 1990: 12). Sonho este que consistia em nada menos que recriar a natureza humana: 
"Aquele que ousa empreender instituir um povo deve sentir-se em posição de mudar, por assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por si mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual este indivíduo receba, de uma certa maneira, a sua vida e o seu ser; de alterar a constituição do homem para forçá-la a substituir uma existência parcial e moral pela existência física e independente que recebemos da natureza." (Rousseau 1762[1834]: 57 – grifos meus).
A religião civil de Rousseau trazia consigo alguns dos principais elementos do Gnosticismo dos primeiros séculos da Era cristã, a começar pela insatisfação com a natureza humana atual e a tentativa de criar uma nova. Como explica Tocqueville a respeito da Revolução Francesa: 
"Como tendia à regeneração do gênero humano mais que à reforma da França, ela acendeu uma paixão que, até então, as mais violentas revoluções políticas jamais tinham sido capazes de produzir. Inspirou o proselitismo e fez nascer a propaganda. Assim, pôde ela guardar aquele ar de revolução religiosa que tanto espantou os seus contemporâneos; e, mais ainda, tornar-se ela própria uma espécie de nova religião, imperfeita, sem dúvida, sem Deus, sem culto e sem outra vida, mas que, no entanto, como o islamismo, inundou toda a terra com os seus soldados, seus apóstolos e seus mártires." (Tocqueville 1856: 43).
Compreende-se melhor, a esta altura da análise, porque o Cristianismo implicava um incômodo existencial para a religião civil dos Philosophes. Esta era uma versão moderna da velha "religião da cidade" do mundo pagão, contra a qual, precisamente, o Cristianismo se constituíra (cf. Fustel de Coulanges 1864[2000]: 167 ss.)
Como sugere Arnold Toynbee em An Historian's Approach to Religion (Toynbee 1956), o Cristianismo nasceu em oposição à auto-adoração do homem, especialmente em sua forma coletiva, o culto ao Estado e à comunidade. O autor traça uma tipologia universal das religiões humanas segundo o critério de seus "objetos" de devoção. Haveria, sob essa ótica, três espécies de religiões: as religiões que adoram a Natureza; as religiões que adoram o próprio Homem; e, por fim, as "religiões superiores", que adoram uma Realidade Absoluta, a qual não se confunde nem com a Natureza nem com o Homem, mas que está neles e, ao mesmo tempo, além deles. Em sua forma coletiva, as "religiões do Homem" constituíram-se como cultos a comunidades "paroquiais", que, eventualmente, como foi o caso de Atenas e Roma, tornaram-se comunidades "ecumênicas". Tais "religiões de estado", explica o autor, surgiram em função da necessidade de sanções sagradas como garantia da ordem pública. Após a desintegração da República Cristã, o Estado Moderno teria surgido com o espírito da antiga religião civil pagã (cf. Toynbee 1956: cap. 16).
Nesse sentido, o Leviatã de Hobbes e a volonté générale de Rousseau são emanações do poder absoluto da coletividade, fonte da moral e da experiência de mysterium tremendum, como diria Rudolf Otto (1979[2007]: cap. 4). São elementos de "religiões políticas" (cf. Gurian 1964; Voegelin 1986; Linz 2004; Hardtwig 2001; Gentile 2006; Azevedo 1981; Meira Penna 1985).
A Revolução Francesa foi a primeira delas. Seu fundamento tendo sido a "revolta metafísica" de que fala Camus. Com ela, teve início o "esforço desesperado para fundar, ainda que ao preço do crime, se for o caso, o império dos homens." (Camus 1951[1999]: 41). Mas ela não obteve sucesso em romper definitivamente com a cosmovisão cristã. Uma vez que os Philosophes acreditavam que a moralidade era independente do Cristianismo (cf. Himmelfarb 2004: 153), eles tentaram destruir a velha religião mas manter alguma moralidade absoluta, apenas transferindo-a da consciência individual para a "vontade geral". A moralidade iluminista era essencialmente pública ou política. Contrariando Maquiavel nesse ponto, Rousseau acreditava plenamente na união entre moralidade e política. Aqueles que separavam as duas esferas, dizia ele, não compreendiam nada nem de uma nem de outra (cf. Becker 1932: 104). 
A antirreligiosidade do Iluminismo francês era, por conseguinte, menos um anticristianismo do que um pseudocristianismo. Uma mistura confusa entre a cidade terrena e a cidade Celeste: a Cidade dos Intelectuais, em que a religião e a política estariam, desde então, eternamente fundidas; em que a própria política tornar-se-ia sagrada, como quis Feuerbach. 
O século XX foi o ápice da previsão - ou maldição - feuerbachiana, com o surgimento das maiores religiões políticas da humanidade: o internacional-socialismo e o nacional-socialismo. Não por acaso, ele foi, até hoje, o mais sangrento século de nossa história. Quando a política passa a ser compreendida numa chave soteriológica, os adversários passam a ser vistos como "impuros", os opositores como "malignos", toda restrição ao poder como "pecado"... 
E a deputada trambiqueira do PSOL como “mártir”.

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Das Virtudes e Vícios do Ceticismo

Em maio de 2012, o autor destas linhas frequentava um curso preparatório para o difícil e concorrido concurso do Itamaraty. Faziam três...