quinta-feira, 22 de julho de 2010

Exercícios de Novilíngüa*: o significado de "polêmica"

Acho curioso o fato de que muita gente, inclusive gente inteligente, acredite que a TV Globo seja contra o governo Lula e contra o PT. Talvez essa visão seja herança dos tempos da ditadura, quando, pelo menos no início, a Globo foi oficialmente favorável ao golpe militar e ao anticomunismo. Mas, de lá para cá, tanta coisa já aconteceu, tanta água já rolou, a Globo já se modificou tanto – tendo, inclusive, acolhido profissionalmente vários daqueles antigos comunistas, como, por exemplo, no jornalismo, Franklin Martins, e, na tele-dramaturgia, Dias Gomes e Janete Clair – que me parece ser uma análise equivocada e preguiçosamente esquemática continuar associando a emissora ao anti-esquerdismo.

Atualmente, penso que não seria difícil encontrar indícios exatamente do contrário daquela tese inicial, indícios de que a Globo é, quase sempre, muito solidária ao atual governo, endossando, ainda que, é claro, não explicitamente, diversos de seus projetos para a sociedade brasileira. Gostaria, por ora, de lidar com um exemplo apenas: o recente projeto de lei que, complementando um artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente, pretende proibir as palmadas educativas.
No último domingo (18/07/2010), por exemplo, o programa Fantástico apresentou uma matéria sobre a lei das palmadas (Assistam). Ao longo do programa, várias chamadas anunciaram a matéria, indicando se tratar de uma questão “polêmica”. Os telespectadores, então, se prepararam para uma reportagem sobre algo não-decidido, ou difícil de decidir, tal qual se depreende do sentido da palavra “polêmica”.
Confesso que eu, pelo menos, nunca havia pensado na palmada em si como algo significativamente “polêmico” para a sociedade brasileira. Esclareço logo que, pessoalmente, não acho legal utilizar a violência na educação dos filhos. Penso que, de uma forma geral, há métodos mais inteligentes e eficazes. Mas creio que, na maior parte dos casos, os pais que, eventualmente, dão uma palmada nos filhos, também pensam assim. A palmada é dada, normalmente, no momento em que o pai perdeu a paciência, cujos limites foram testados pela criança. E, neste sentido pelo menos, a palmada tem algo de educativo: ela mostra para a criança que seus pais são seres humanos, portanto, sujeitos a emoções, e que podem, por isso mesmo, perder o controle se os filhos exageram no mau-comportamento. Não se pode negar que isto pode contribuir para o desenvolvimento do senso de empatia da criança, ou seja, a capacidade de perceber o outro como um sujeito, e não apenas como objeto de nossos desejos e vontades.
O ponto é que a palmada em si não é uma novidade na sociedade brasileira. Por que, se ela é algo tão polêmico, já não surgiram antes tantas reportagens sobre o assunto? A verdade é que a palmada não tem nada de muito polêmico, nem tira o sono de ninguém. O fato novo, a grande novidade, é a proposta de uma lei governamental que pretende proibir as palmadas. Esta é – ou, ao menos, deveria ser – a questão polêmica. A reportagem do Fantástico poderia ter colocado as seguintes perguntas: você é ou não a favor de que o governo tenha tamanha ingerência sobre a educação dos seus filhos? Você concorda com a idéia de que, por exemplo, qualquer estranho possa chamar a polícia se você der uma palmadinha no seu filho durante um passeio no Shopping Center? Mas o programa não colocou tais questões. A polêmica foi montada em torno da palmada em si. Ou seja, contrariando o bom senso jornalístico, a matéria desprezou o fato novo e relevante, atendo-se, em vez disso, a fatos corriqueiros e banais. A pergunta que o telespectador foi convidado a responder era: você é a favor ou contra a palmada na educação dos filhos?
Mas a coisa não ficou por aí. A reportagem se mostrou mais tendenciosa. Aparentemente contrariados com o resultado da votação – a maioria dos telespectadores (69%) foi favorável ao uso eventual e moderado da palmadinha –, os autores da matéria prosseguiram na intenção de ‘corrigir’ as pessoas que haviam opinado de tal forma. “A maioria dos telespectadores achou que a palmadinha é inevitável e serve para educar. Será mesmo?”, pergunta o apresentador, para depois introduzir uma nova reportagem sobre “o que concluiu um estudo feito nos EUA”. A reportagem informava sobre os danos psíquicos causados pela palmada, supostamente comprovados por “especialistas” (palavra mágica!) de universidades norte-americanas (Assistam). A estrutura da reportagem foi toda montada assim: convidava para uma polêmica, tomava o partido de um dos lados da polêmica – apresentando os adeptos da palmada sempre em situação inferiorizada, sendo educados e corrigidos por especialistas (psicólogos, conselheiros tutelares, pedagogos etc.) – e encerrava com uma lição de moral: dar palmadas é errado.
Tal conclusão apenas já seria bastante favorável à iniciativa do governo. Afinal, se dar palmadas é errado, uma lei que as proíba só pode ser benéfica. Mas isso não é tudo. Sobre a questão da lei propriamente, o Fantástico pouco disse diretamente, mas, de maneira velada, mostrou-se completamente pró-governo. A matéria cedeu espaço à posição do governo, representada pelas palavras do conselheiro tutelar Heber Boscoli: “A criança acha que ‘meu pai pode me bater, porque é meu pai e tem o direito’. Não tem o direito de bater”. A conclusão que se pode tirar destas palavras me parece clara: o governo pretende ensinar às crianças que o respeito e reverência que elas demonstram em relação à autoridade dos pais devem ser revistos. Pois bem. O Fantástico não entrevistou nenhuma pessoa que pudesse questionar esta posição do governo, e me parece que ela é altamente questionável. 
Diz um trecho da reportagem: “Pelo projeto, atitudes para punir ou disciplinar não podem machucar nem causar nenhum tipo de dor. Crianças e adolescentes também não podem ser humilhados nem ameaçados”. Note-se, portanto, que, se a lei for aprovada, um pai que for surpreendido na rua ameaçando o filho de castigo se ele não parar de fazer birra, pode ser interpelado pelas autoridades. E o que será que o governo considera “humilhação”? Repreender o filho na frente dos outros, por exemplo, constitui “humilhação”? Para esclarecer a posição do governo – e para que ninguém acredite se tratar de uma lei autoritária e absurda –, a reportagem cede a palavra a Carmem Oliveira, subsecretária nacional de Direitos da Criança e do Adolescente:  “A nossa preocupação é com palmadas reiteradas ou a palmada que vai à surra e que vai ao espancamento, que vai agravando a conduta de violência”. Olhando assim, parece ser uma posição razoável. Afinal, quem, em sã consciência, vai concordar com surras e espancamentos de crianças? Acontece que o texto da nova lei não fala em “surras” e “espancamentos” (até porque tais delitos já estão previstos legalmente), mas em palmada. A lei pretende simplesmente proibir a palmada, seja umazinha apenas ou mais de dez.
Por último, me parece evidente que a preocupação do governo é menos com o bem-estar das crianças e mais com o aumento de sua autoridade sobre a vida privada das pessoas. Creio que este caso das palmadas se insere num amplo projeto totalitário de ocupação de espaços pelo Estado, assunto que é um dos interesses principais deste blog. Trata-se, com esta lei, de esvaziar a influência da família sobre os filhos, minando o pátrio poder até que, no limite, a hierarquia familiar seja rompida e substituída pela tutela estatal. Pais e filhos já não estarão mais diferenciados hierarquicamente – diferença essencial para que a própria noção de família faça sentido –, passando a ser tratados, ambos, como partes equivalentes perante o Estado, este sim, educador soberano e figura única de autoridade. Ora, quem realmente se preocupa com as crianças não pensaria em sugerir que elas relativizem a autoridade paterna, sendo os pais figuras que, naturalmente, os filhos admiram e tomam como modelo. Como poderia ser saudável para uma criança ver seu pai ser processado ou obrigado a tratamento psicológico por ter lhe dado palmadas? O que há de positivo em retirar a autoridade de uma mãe – tão fundamental na formação psíquica e moral de uma criança – e entregá-la nas mãos de algum burocrata do governo? 
Enfim, todas estas questões, que poderiam ter sido levantadas pela reportagem, não foram sequer concebidas. O atual governo segue seu projeto de expansão para dentro das vidas privadas dos brasileiros. E uma parcela significativa da imprensa, que poderia contribuir para frear esse processo, comporta-se de maneira omissa e subserviente. O programa Fantástico prestou um grande desserviço à sociedade brasileira ao não lidar com o aspecto central da questão, que dizia respeito às relações entre Estado e sociedade civil. Em compensação, prestou um belo serviço ao governo quando embelezou, por meio de matéria tendenciosa e diversionista, o tal projeto de lei anti-palmada. Como eu havia dito em outro post, no Brasil de hoje, palavras como "polêmica" e "debate" são letra morta: o mérito já está decidido de antemão.




*Para quem não sabe, novilíngüa (newspeak, no original) é um idioma fictício imposto pelo Estado totalitário de Oceania, no célebre 1984, de George Orwell. A novilíngüa consistia na distorção e, freqüentemente, inversão do sentido usual das palavras, de modo a limitar o escopo do pensamento. A intenção era que, se as pessoas não pudessem mais se referir a certas coisas, tais coisas, na prática, deixariam de existir. 




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