quarta-feira, 21 de julho de 2010

Quando a política "pega mal"

A disputa eleitoral ganhou novo ânimo nos últimos dias. O deputado Índio da Costa, candidato à vice-presidência na chapa de José Serra, afirmou em entrevista ao site Mobiliza PSDB: “todo mundo sabe que o PT é ligado às FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), ligado ao narcotráfico, ligado ao que há de pior...” (Vejam).
Como era de se esperar, o PT reagiu com indignação e ameaças de processo. O que não era de se esperar, num regime democrático, é que a maior parte da imprensa e dos comentaristas políticos fosse tomar as dores dos petistas. E foi exatamente isso o que aconteceu. Até mesmo uma candidata que se apresenta como de oposição ao governo, a ex-ministra Marina Silva, qualificou de “baixaria” as declarações de Índio da Costa.
O ponto essencial da réplica petista consistiu na afirmação de que, por estar em situação adversa na disputa eleitoral, o PSDB começava a apelar para a difamação e calúnia, “baixando o nível” do debate político. E, de fato, expressões como “baixar o nível” ou “baixaria” começaram, a partir de então, a circular com incrível constância. Essa convergência aparentemente tão espontânea de sentimentos e vocabulário deveria despertar a curiosidade de qualquer analista político. Parece que Índio da Costa havia, de algum modo, infringido algum código de conduta pretensamente consagrado, tocado em uma corda sensível dos formadores de opinião. Nas matérias dos jornais, nas colunas e nas resenhas, a declaração de Índio da Costa começou a aparecer como tendo despertado “uma reação negativa” – universal e misteriosamente negativa, diga-se de passagem –, e não apenas por parte dos supostamente ofendidos, ou seja, os petistas. No entanto, para além dos petistas, quem teria reagido negativamente às declarações ainda não foi definido com precisão. Os veículos de imprensa, de modo geral, optaram por uma forma impessoal, “houve uma reação negativa”, tornando difícil saber se se tratava mesmo de uma informação sobre uma reação negativa ou de uma indução a uma reação negativa.
Para dar apenas um exemplo da tônica geral da visão jornalística sobre a querela, gostaria de mencionar os comentários da cientista política e jornalista Lúcia Hippolito, feitos no dia 20/07/2010, no quadro "Por Dentro da Política", da rádio CBN (ouçam aqui). Utilizo esse exemplo não porque haja nele algo de particularmente significativo, mas, ao contrário, por ser bastante representativo da opinião mediana veiculada pela imprensa. Ao ser perguntada sobre o andamento da corrida presidencial, a cientista política disse que o clima andava “tenso e pesado” nos últimos dias, indicando como uma das causas para isso as declarações de Índio da Costa, que teria, ainda segundo ela (em comentário do dia anterior), “pegado pesado” (ouçam aqui). Para a comentarista, nada disto era bom para a disputa eleitoral e nem favorecia o processo democrático, porque desviaria o foco de questões centrais como a discussão dos programas de governo, o confronto direto entre os candidatos, as propostas concretas sobre temas específicos como saúde, educação, segurança – enfim, os de sempre. Neste sentido, ela via com alívio a aproximação do horário eleitoral gratuito e dos debates oficias. Todo o raciocínio de Lúcia Hippolito pode ser resumido nos seguintes termos: declarações como as de Índio da Costa, além de ferir certo código de etiqueta conveniente ao jogo democrático, tocavam em aspectos irrelevantes, prejudicando a discussão sobre aquilo que a comentarista considerava ser o “essencial” na corrida eleitoral. Nas palavras de Hippolito: “nossos problemas são enormes para termos uma campanha com clima de futrica”.
Pois bem. Antes de entrarmos no mérito mesmo da questão – Índio da Costa está ou não falando a verdade? –, parece-me que o simples fato de qualificar como “futrica” a hipótese de uma ligação entre o governo de um país e o narcotráfico já é bastante extravagante, ainda mais vinda da boca de uma jornalista cuja especialidade é, justamente, a política. Porque, afinal, se a hipótese é verdadeira, nada na disputa eleitoral pode ser mais relevante do que essa informação; se, do contrário, ela é falsa, é preciso que seja desmentida com firmeza, e que seu propositor, por ser candidato, seja punido e afastado da disputa. Em qualquer um dos casos, a questão jamais poderia ser considerada algo menor ou de pouca importância. Nada pode ser mais grave do que, de um lado, um governo ser ligado ao crime organizado ou, de outro, um candidato à vice-presidência ser irresponsável a ponto de inventar uma coisa dessas.
Mas o fato é que a tal “repercussão negativa” – categoria empregue pela imprensa como auto-evidente – acabou intimidando os proponentes da grave acusação. Via twitter, Índio da Costa recuou um pouco, dizendo que o PT não tem ligações com o narcotráfico, mas as FARC sim. Já o candidato à presidência José Serra afirmou que “todo mundo sabe que o PT tem ligações com as FARC, embora isto não signifique que tenha ligações com o narcotráfico”. Enfim, os próprios autores da acusação perceberam que ela, de algum modo, “pegou mal”.
Isto nos leva ao assunto central deste texto. Ele pode ser resumido nas seguintes perguntas: como é possível que a simples menção de discutir um assunto que, como já mostrei, não pode deixar de ser importantíssimo, tenha “pegado mal” na opinião pública? O que aconteceu com o pensamento brasileiro para que a política viesse a ser concebida assim de forma tão irreal, como uma espécie de salão de chá no qual os personagens devem seguir regrinhas fixas de bom comportamento? De onde veio um conceito tão distorcido de política? Como a investigação sobre o poder, tema central da ciência política desde que ela foi criada, há mais de 2000 anos, por Platão e Aristóteles, pode ter sido substituída por esta atenção pueril às regras de etiqueta no jogo eleitoral? E, ainda, como um tópico tão vital quanto o poder – que, segundo célebre definição de Max Weber, consiste, nada mais nada menos, na capacidade que tem um ator social de impor sua vontade sobre outro – pode ter sido reduzido a elucubrações sobre um mundinho ideal de conto-de-fadas, a chamada “festa da democracia”, onde candidatos racionais e bem-educados debatem idéias e trocam pontos de vista? As noções de “debate” e “troca de pontos-de-vista”, aliás, são utilizadas com tamanha freqüência, e com tão pouca reflexão, que acabam ocultando decisões políticas implementadas à sua sombra. No Brasil atual, o tal debate é realizado, no mais das vezes, sobre questões já há muito decididas e sacramentadas. O fato é que a realidade política não é feita de debate de idéias ou troca de pontos-de-vista. Ela é feita de disputas pelo poder e imposição de vontades. Hitler não teria sido contido por meio de argumentos – por mais racionais e bem-educados que fossem – acerca da monstruosidade de seus atos.
Que a política no Brasil tenha sido reduzida a tal festival de formalidades sem conteúdo parece-me um sinal claro de que nossa sociedade esteja atordoada e nossa ciência política praticamente moribunda. Quando uma comentarista profissional diz que possíveis ligações do governo com o crime organizado são menos importantes do que a discussão de “programas de governo”, estamos diante, então, de uma espécie de metástase intelectual. A perda do senso de hierarquia é o seu sintoma mais manifesto.
Ora, qualquer pessoa medianamente esclarecida notará que, no Brasil de hoje (e talvez no mundo todo), os programas de governo pouco diferem uns dos outros. Todos eles são escravos de uma espécie de consenso público, que determina, literalmente, a esfera do “politicamente correto”: um quadro estabelecido de referências e vocabulário fora do qual um candidato qualquer não será considerado mais do que um pária. Hoje em dia, um candidato que não apresentar um discurso afinado sobre, por exemplo, meio-ambiente ou sustentabilidade jamais terá muita visibilidade na imprensa. Os mecanismos pelos quais tal “consenso” é imposto de cima para baixo, sob a inocente aparência de uma onda irresistível e espontânea, constituem um tema interessante por si mesmo, que exigiria um estudo à parte. Mas o que me interessa aqui é mostrar o quão inócua é a análise de programas de governo e declarações de campanha para se compreender as forças envolvidas em qualquer disputa política. Aquilo que os candidatos dizem e pensam não nos ajuda, no mínimo que seja, a entender o que eles efetivamente fazem e poderão vir a fazer. Por exemplo, se o PT nos apresenta um belo programa de combate à violência e ao narcotráfico enquanto, ao mesmo tempo, assume compromissos políticos com organizações que fazem uso da violência e do narcotráfico, fica evidente que o programa não passa de uma fantasia, quando muito um discurso vazio de significado, e que o dado relevante para o analista são as alianças concretas do partido. A ciência política lida com esquemas e relações de poder e não com declarações formais de intenção. Confesso que me sinto um pouco constrangido por ter que lembrar esse tipo de coisa a uma cientista política de formação como Lúcia Hippolito.
Diante do exposto acima, fica claro que a ligação do PT com qualquer organização política transnacional é, então, de uma importância ímpar. Se esta organização, além disso, é um grupo guerrilheiro e, eventualmente, narcotraficante, o assunto torna-se não apenas urgente, mas inadiável. Não custa lembrar que o tráfico de drogas é um dos grandes responsáveis pelo espantoso índice de homicídios no Brasil (na cada das dezenas de milhares por ano, segundo o Mapa da Violência 2010).
O fato é que a “proibição de perguntar” – expressão cunhada pelo filósofo político Eric Voegelin, autor que, num livro magistral chamado Hitler e os Alemães (1951), nos revelou uma sociedade alemã às vésperas da ascensão do nazismo que, curiosamente, guarda muitas semelhanças com a sociedade brasileira atual – atingiu, neste caso das declarações de Índio da Costa, uma magnitude impressionante. A imprensa, em vez de questionar se o que estava sendo dito era ou não verdade, como seria o seu dever, preferiu pontificar sobre as qualidades estéticas e superficiais da afirmação, ou simplesmente silenciar sobre o assunto. Pouco importava se Índio da Costa dizia ou não a verdade, o que importava é que ele tinha sido “grosseiro”, “extremista”, “radical”. Entre uma mentira chique e uma verdade mal-comportada, a opinião pública brasileira nem pestaneja: opta pela primeira. Bem dizia o grande intelectual Mário Vieira de Mello, quando, já nos anos 1960, chamava a atenção para o estetismo atávico dos bem pensantes brasileiros (ver Desenvolvimento e Cultura: o problema do estetismo no Brasil, de 1963).
O “não-me-toques” generalizado da opinião pública – cujos principais porta-vozes se comportaram, nesse caso, como mocinhas pudicas – já seria, em si mesmo, extremamente curioso. Mas o que torna o caso ainda mais curioso é que, com tudo o que se diga, Índio da Costa falou a verdade: o PT tem mesmo ligações com as FARC e com o narcotráfico. Resta que a verdade é totalmente autônoma em relação àquele que a expressa. Venha de onde venha, dita por um ou por um milhão, a verdade é sempre uma só. E aí as coisas se complicam de vez, e a realidade da miséria brasileira se revela mais assustadora do que imaginávamos. Tendo Índio da Costa falado a verdade, o que pode ter acontecido com uma sociedade para que, nela, esta verdade se torne algo que “pega mal”?
Como sei que Índio da Costa falou a verdade? É simples. Basta coletar informações divulgadas publicamente pela própria imprensa e por autoridades competentes. Eu mesmo fiz essa coleta, que apresento no próximo post, pois a narrativa midiática, no Brasil sobretudo, é extremamente descontínua e fragmentada. Dizem que o povo tem memória curta, mas a imprensa brasileira tem muito mais. Ela noticia certas coisas com um conta-gotas e, surpreendentemente, não explora as conseqüências do que acaba de noticiar. Ora, o PT não pode processar ninguém que afirme as tais ligações com as FARC, a não ser que processe, antes de tudo, a quase totalidade dos grandes meios de comunicação no país e fora do país: o Globo, a Folha de São Paulo, o Estadão, a revista Época, a revista Veja, as revistas colombianas El Tiempo e Cambio, o francês Le Monde, o argentino La Nación, etc.
O material fornecido pela imprensa não é a única fonte para verificarmos o mérito da declaração de Índio da Costa. Contamos também com diversas fontes primárias, entre as quais um documento assinado em 2001, no X° Encontro do Foro de São Paulo, em Havana, onde o PT, junto com todos os membros do Foro, se comprometeu a prestar “solidariedade incondicional” às FARC, classificando o governo da Colômbia, além disso, de “estado terrorista”, por seu combate vigoroso àquela organização. O Foro de São Paulo foi fundado por Lula e Fidel Castro em 1990, e reúne organizações de esquerda da América Latina, incluindo o PT e as FARC. Portanto, não sou só eu que sei que Índio da Costa disse a verdade. Lula também sabe. José Dirceu sabe. Dilma Roussef sabe. Marco Aurélio Garcia sabe. Celso Amorim sabe. José Eduardo Dutra, que tanto esperneou e ameaçou, também sabe. Enfim, toda a cúpula do PT sabe e, não podendo lidar diretamente com o mérito da questão, eles fazem como a imprensa: apelam às regras da boa educação eleitoral e posam de vestais ofendidas. Mas, afinal, se os petistas consideram algo tão depreciativo a relação com as FARC, a ponto de qualificar de “baixaria” sua menção, por que eles mantiveram tais relações por tanto tempo? Por que, ainda hoje, eles se recusam a considerar as FARC um grupo terrorista?
O que tem o PT a dizer sobre as alegadas relações propriamente ditas? Aparentemente nada. Ameaças histriônicas de processo não vão resolver a questão, já que estas ameaças não anulam a realidade do documento referido acima, por exemplo. Algo é preciso ser dito, nem que seja uma nota de arrependimento de ter sido, em algum momento, solidário às FARC, acrescido, quem sabe, da promessa de ter se livrado de tal parceria. O estranho é que, até agora, tudo o que o PT fez foi vociferar e arreganhar os dentes, exercendo o que se costuma chamar de jus esperneandis. Dilma, por exemplo, diz que se recusa a entrar neste tipo de polêmica, e que o "povo brasileiro" não merece uma disputa eleitoral com este "baixo nível" (curiosamente, quase o mesmo argumento de Lúcia Hippolito). Até agora, portanto, nenhum petista disse com todas as letras: “nós não temos nem nunca tivemos relações com as FARC”. Eles simplesmente não podem dizer tal coisa. As razões me parecem óbvias.

3 comentários:

  1. MUITO BOM. ASSINO EMBAIXO.
    COMO SEMPRE, E "MAIS DO QUE NUNCA NA HISTÓRIA DESSE PAÍS", O IMPORTANTE NÃO É SER, MAS PARECER SER...
    O RESTO - A VERDADE INCLUSIVE - QUE SE DANE!
    SP

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  2. Gostei ! Somente espero que a Dilma e o PT desaparecam do Brasil. Queremos viver em paz . Nao aguento mais tantas mentiras. Acho que essa gente nao conhece a verdade, ou o verdadeiro sentido dessa palavra
    Fora PT !!!Fora Lula !!!!
    Mombassa .

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  3. Parabéns! Muito esclarecedor. Post que deveria ser lido por todos os brasileiros.

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