quarta-feira, 4 de setembro de 2013

"Só a política salva": ensaio sobre a religião da Intelligentzia (e da Burritzia também)



"Só a política salva", diz a deputada do PSOL com a boca na botija (ver aqui). O dinheiro desviado não era para ela, mas para a ação política. E a ação política, sabe-se, é sagrada.
É claro que a senhora Janira Rocha, a deputada em questão, não tirou isso de sua própria cabecinha. O caminho percorrido até que essa ideia pudesse ser dita assim de maneira tão explícita foi pavimentado por muitos intelectuais e apóstolos da política como religião. De fato, a ideia atravessa toda a nossa história contemporânea, desde, pelo menos, o século XVIII. A fala da deputada confirma a acertada previsão de Ludwig Feuerbach - que marcaria tragicamente todo o século XX - de que a política tornar-se-ia a nova religião. 
Pretendo, nesse artigo, analisar a origem daquela ideia e por que ela teve sempre no Cristianismo o seu maior obstáculo.
* * *
A revolta contra a transcendência não pode deixar de produzir substitutos. "O homem acredita quer num deus, quer num ídolo. Não há uma terceira opção!", dizia Max Scheler (1960: 399).
A Revolução Francesa parece ter confirmado a verdade daquele axioma. Ali, de maneira quase caricata, elementos centrais da doutrina e da missa cristãs foram parodiados e convertidos em exóticos cultos seculares. Tendo lugar em catedrais como a Notre Dame, os cultos iam desde batismos e catecismos cívicos até prostrações penitentes diante da "Santa Igualdade" ou da "deusa Razão" (cf. Lehmann da Silva 1985: 25). Uma nova religião, tendo a razão humana como divindade e os Philosophes como apóstolos, surgia no horizonte como uma aurora de esperança e redenção.
Em O Antigo Regime e a Revolução, Alexis de Tocqueville já notara o caráter de religião substitutiva da Revolução Francesa (Toqueville 1856). Segundo o pensador francês, ao contrário do padrão de usual de revoluções civis e políticas – que implicam sempre uma pátria ou território nos quais se encerram –, a Revolução Francesa não teve um território próprio e, mais do que isso, o seu efeito foi apagar do mapa todas as antigas fronteiras. Acima de todas as nacionalidades, ela formou uma "pátria intelectual comum", da qual os homens de todas as nações podiam tornar-se cidadãos. Como escreveu Carl Becker a respeito dos guias espirituais da Revolução: "Os Philosophes demoliram a Cidade de Deus, de Santo Agostinho, apenas para reconstruí-la com novos materiais." (Becker 1932: 31)
Não havia nos anais da história, segundo Tocqueville, uma única revolução política com as mesmas características da Revolução Francesa. Estas ter-se-iam observado apenas em revoluções religiosas. Por isso, Tocqueville achava que era às revoluções religiosas que a Revolução Francesa deveria ser comparada se se pretendesse captar a sua substância e essência. Em suas palavras:
"A revolução francesa é, pois, uma revolução política que operou à maneira, e assumiu o aspecto, das revoluções religiosas. Note-se por quais traços particulares e característicos ela veio a parecer-se com as últimas: ela não apenas se difunde como aquelas, mas, como elas, penetra por meio da pregação e da propaganda. Uma revolução política que inspira o proselitismo." (Tocqueville 1856: 40)
O componente religioso da Revolução – a pregação, a propaganda, o proselitismo – ficou ao encargo dos Philosophes, que desejavam pôr fim à antiga religião francesa (o Catolicismo) ou, ao menos, purificá-la à maneira dos milenaristas medievais. Com suas próprias mãos (e com as penas que nelas traziam), eles pretenderam fazer da cidade dos homens uma cidade celeste, substituindo, nos termos de Agostinho, o "amor a Deus" pelo "amor próprio".
A maior parte dos Philosophes tinha plena consciência de sua tarefa de substituir os antigos sacerdotes religiosos na função de conduzir a humanidade rumo a um paraíso, neste caso, terreno. Sendo os mais novos protagonistas do que Dumézil chamou de "casta sacerdotal" - correspondendo também ao sentido amplo que Julien Benda conferiu à palavra "clerc" (clérigo) -, eles passaram a elaborar os princípios abstratos e os valores transcendentes substitutivos – "razão", "igualdade", "vontade geral" – necessários à instituição daquilo que Rousseau chamou de religião civil (Rousseau 1762[1834]: cap. 8). 
Um dos mais importantes princípios abstratos do Iluminismo francês foi, certamente, a razão. Este fetiche iluminista vinha ocupar o lugar da graça cristã na nova doutrina espiritual. Ninguém menos que Diderot afirmou-o no verbete "Philosophe" da Encyclopédie: "a razão é, para o filósofo, aquilo que a graça é para o cristão. A graça impele o cristão a agir, a razão impele o filósofo." (apud. Himmelfarb 2004: 152). 
Logo, tratava-se para os Philosophes de assumir as funções sacerdotais outrora exercidas pela religião tradicional, considerada, a partir de então, uma espécie de rival da emergente "religião da humanidade". Mais do que um protesto contra o caráter opressor e autoritário da instituição clerical francesa da época – que também teve o seu papel –, a ojeriza daqueles intelectuais frente ao Cristianismo explica-se melhor, portanto, por uma questão de rivalidade espiritual e disputa pela alma dos homens.
No seu livro, Tocqueville comenta que "dentre as paixões que nasceram daquela Revolução, a primeira a se acender, e última a se extinguir, foi a paixão irreligiosa." (Tocqueville 1856: 31). Tal "paixão irreligiosa" significava, na prática, um profundo anticristianismo por parte dos Philosophes. E se, à exceção de Condorcet, a maioria daqueles intelectuais já havia morrido quando a Bastilha veio ao chão, a verdade é que suas idéias inspiraram a violência revolucionária contra membros de igrejas, conventos e mosteiros franceses. Obras como A Religiosa, de Diderot, viriam a provocar um efeito explosivo naquele verão de 1789.
Como mostra Jean Dumont em A Revolução Francesa e os Prodígios do Sacrilégio (cf. Dumont 1984: 187-335), as primeiras manifestações violentas das turbas revolucionárias voltaram-se inicialmente não contra nobres e aristocratas, mas contra bispos, arcebispos, padres e freiras:
"A primeira manifestação de violência revolucionária foi reservada à Igreja. No início do verão de 1789, esta violência não havia em absoluto visado o rei ou os aristocratas, mas, desde os dias 24 e 25 de junho, o bispo de Beauvais, deixado num estado semi-inconsciente, e o arcebispo de Paris (...) que, apedrejado, escapou com vida graças à agilidade dos cavalos de sua carruagem (...) Megeras e trabalhadores braçais, após forçarem a entrada dos conventos, lançaram-se sobre as religiosas, agredindo-as e flagelando-as até arrancar-lhes sangue, e durante horas a fio. Assim foram tratadas as Visitandinas (dois conventos), as Recoletas, as Filhas do Precioso Sangue, as Filhas do Calvário, as Filhas da Santa Genoveva, e as Filhas da Caridade..." (Dumont 1984: 203-204)
Os Philosophes não foram revolucionários políticos. Não eram republicanos, nem tampouco pretenderam destruir a monarquia ou a classe aristocrática (cf. Himmelfarb 2004: 149-187; Dumont 1984: 188-197). Como se sabe, muitos deles - como, por exemplo, Diderot e Voltaire - defendiam um "despotismo esclarecido" (expressão da época, aliás, e não uma criação posterior de historiadores). Havia nessa defesa muito de gratidão e interesse pessoal. Afinal, os Philosophes costumavam ser paparicados, festejados, consultados e mesmo financiados por monarcas europeus. "Como resistir a um rei vitorioso, poeta, músico, filósofo, e que, ainda por cima, parece adorar-me?", questionava-se Voltaire, referindo-se a Frederico II, rei da Prússia. O mesmo poderia ter perguntado Diderot a respeito de Catarina da Rússia. 
Mas, para além do encanto dos iluministas parisienses com aqueles monarcas (e vice-versa), havia um significativo princípio filosófico por trás da apologia do despotismo esclarecido. Como afirma Gertrude Himmelfarb, o despotismo esclarecido, do ponto de vista dos intelectuais franceses, era uma tentativa de entronizar a razão, corporificada na pessoa de um déspota a ser "esclarecido", justamente, pelas luzes dos Philosophes. (cf. Himmelfarb 2004: 163). Era uma troca, uma aliança entre o poder político-militar e o poder "clerical" (no sentido de Benda).
Assim, se os Philosophes ansiavam por algum tipo de revolução, esta não dizia respeito à estrutura político-social da França do século XVIII, mas à estrutura espiritual da nação. "As revoluções se fazem nos espíritos antes que nas coisas", dizia Albert Mathiez, historiador marxista da Revolução Francesa (apud. Dumont 1984: 187).
A distinção entre duas revoluções ocorrendo no interior da Revolução – uma revolução religiosa ("nos espíritos"), inspirada diretamente pelos Philosophes, e uma revolução política ("nas coisas"), que teve menos relação com as suas idéias – explica-se, em larga medida, pelas características particulares assumidas pelo Iluminismo francês, que o distinguia, por exemplo, do Iluminismo britânico. Tocqueville descreveu bem a diferença:
"Enquanto, na Inglaterra, aqueles que escreviam sobre o governo e aqueles que governavam estavam misturados - os primeiros introduzindo na prática as novas idéias, os últimos ajustando e circunscrevendo as teorias em função dos fatos -, na França, o mundo político restava como que dividido em duas províncias separadas e incomunicáveis. Na primeira, administrava-se; na segunda, estabeleciam-se os princípio abstratos sobre os quais toda a administração deveria se fundar. Aqui, eram tomadas as medidas particulares indicadas pela rotina; lá, eram proclamadas as leis gerais, sem que jamais fossem levados em conta os meios pelos quais aplicá-las: a uns, a condução dos negócios; aos outros, o direcionamento das inteligências." (Tocqueville 1856: 244-245 – grifos meus).
Era certamente num "direcionamento das inteligências" – ou, poder-se-ia dizer, numa condução espiritual – que Voltaire parecia estar pensando quando escreveu a um amigo, em 1764:
"Tudo o que eu observo tem lançado as sementes de uma revolução que virá inevitavelmente, e que eu não terei o prazer de testemunhar. Os franceses sempre chegam atrasados, mas ao menos chegam. Gradativamente, as luzes se espalharam a tal ponto que irão irromper na primeira oportunidade, e então haverá grande comoção. As novas gerações têm sorte; elas testemunharão grandes feitos." (apud. Himmelfarb 2004: 181).
A nova constituição espiritual, que viria a fundar a ordem revolucionária emergente, elaborar-se-ia não apenas contra a Igreja, mas contra as bases constitutivas do Cristianismo. Para os iluministas franceses, o Cristianismo era nada menos que uma religião torpe. Mesmo Voltaire – que nunca foi um materialista ateu como d‘Holbach, Helvétius ou Lamettrie, demonstrando, ao contrário, uma devoção deísta a uma divindade sobrenatural – mostrou-se extremamente combativo ao Cristianismo, ainda que, até a década de 1760, ele tenha atenuado a sua retórica anticristã ocultando-a sob a aparência de mero anticlericalismo. Como explica Peter Gay:
"Voltaire trabalhou em silêncio, cultivou a sua raiva, e esperou – ele podia esperar. Entrementes, mascarou publicamente a sua fúria anticristã como sincero anticlericalismo. Foi apenas muito mais tarde, por volta de 1760, que Voltaire rejeitou toda transigência e jogou fora muito de sua cautela. Acontecera muita coisa, tanto com o movimento quanto com ele. Escritores radicais foram perseguidos, e Enciclopedistas dedicados sofreram constrangimentos; a era da cruzada anticristã acelerou-se." (Gay 1966: 390)
Voltaire acreditava que a destruição do Cristianismo era mais importante do que a construção de uma religião substitutiva. À questão sobre o que seria posto no lugar da velha religião, ele respondia: "O quê? Um animal feroz suga o sangue de minha família; eu digo que é preciso livrar-se da besta e me perguntam o que se deve pôr no lugar?" (cf. Gay 1966: 391).
Foi por aquela época, em torno de 1760, e com objetivo de "livrar-se da besta", que Voltaire começou a usar o célebre "Écrasez l'Infâme" ["Esmagar a Infame"] como assinatura pessoal, ao final de cartas e artigos. Tratava-se de um eficaz apelo aos brios dos combatentes da cruzada anticristã. Por tudo isso, Voltaire foi homenageado por Diderot, que, em 1762, chamou-o de "sublime, honorável e estimado anti-Cristo". Nas palavras de Gay: 
"Nenhum epíteto seria mais adequado: uma simples visada na corrente de panfletos que jorrou de Ferney nos últimos dezesseis anos da vida de Voltaire revela um asco pelo Cristianismo beirando quase a obsessão. Intérpretes que restringem 'a infâmia' à intolerância, ao fanatismo, ou ao Catolicismo romano recusam uma conclusão à qual o próprio Voltaire chegara naqueles anos frenéticos: era de se esperar que todo homem sensato e honrado nutrisse verdadeiro horror à seita cristã (ibid.)."
A rejeição iluminista ao Cristianismo resultava de algumas características fundamentais deste último, que contrariavam fortemente o conteúdo espiritual da religião dos Philosophes. Em primeiro lugar, o Cristianismo é uma religião universalista (no sentido de não respeitar fronteiras socioeconômicas), ao contrário da religião dos Philosophes, que era essencialmente elitista. Em segundo lugar, o Cristianismo é uma religião associal, que transcende o domínio do sócius e da "cidade", enquanto a religião dos Philosophes era essencialmente civil e social. E, por último, o Cristianismo é uma religião que fala ao indivíduo concreto em sua relação com a Eternidade, ao passo que a religião dos Philosophes era uma religião da espécie, ou do homem abstrato (hipostasiado pelo Philosophe ele próprio) em sua relação com a posteridade - "a posteridade é, para o filósofo, aquilo que o outro mundo é para o homem religioso", escreveu Diderot em carta ao amigo Étienne M. Falconet (Diderot 1766[1834]: 224). Estas diferenças devem ser analisadas com mais detalhes.
Quando Voltaire dizia que "era de se esperar que todo homem sensato e honrado nutrisse horror pelo Cristianismo", ele não estava pensando nas pessoas comuns. Estas, aos olhos de Voltaire e outros eminentes Philosophes, não tinham como ser sensatas, nem honradas, graças à sua condição de prisioneiras da ignorância e da superstição, traços que os iluministas consideravam essenciais à religião tradicional. Na apresentação da Encyclopédie, obra tida como instrumento para a construção de uma era "filosófica" ou "racional", Diderot deixava claro que a massa das pessoas comuns não faria parte da tal era. "A massa genérica de homens não foi feita para promover, e sequer compreender, esta marcha progressiva do espírito humano", dizia (apud. Himmelfarb 2004: 154). No verbete "Multitude", o enciclopedista foi ainda mais explícito em seu desprezo pelas massas:
"Desconfie do julgamento da multidão em matéria de raciocínio e filosofia; sua voz é a da malícia, da tolice, da desumanidade, da irracionalidade e do preconceito (...) A multidão é ignorante e confusa (...) Desconfie de sua moral; ela não é capaz de produzir ações fortes e generosas; ela é mais admirada que aprovada. O heroísmo é quase uma loucura a seus olhos." (Diderot 1778: 522)
Para Diderot, a população comum era "imbecil" (imbécile) em termos de religião. Enquanto a superstição nacional, segundo o Philosophe, estava à época decaindo, este bem-vindo desenvolvimento dificilmente chegaria até "o populacho" (la canaille, como diziam de modo geral os iluministas franceses). O povo (le peuple) era por demais "idiota, bestial, miserável e ocupado" para se auto-iluminar. Não havia grandes esperanças: "A quantidade de canaille mantém-se sempre mais ou menos estável." Por isso, Diderot acreditava que a multidão carecia – e careceria sempre – de uma religião repleta de rituais e fábulas infantis, como seria o Cristianismo. 
De fato, a religião da razão era para poucos. Jamais poderia ela oferecer o encanto e a ilusão que, segundo os intelectuais franceses, tanto agradavam à canaille. As luzes estavam restritas a um pequeno grupo, uma "igreja invisível" -  assim Diderot o qualificava - cujos membros eram detentores de uma gnose libertadora (cf. Gay 1969: 519-520). Concordando com Diderot, Voltaire dizia que l'Infâme não era para "os homens respeitáveis". Destinava-se à "canaille, para quem fora feita." "Jamais tivemos a pretensão de levar as luzes a sapateiros e serviçais", afirmava Voltaire, deixando clara a diferença entre a religião dos Philosophes e o Cristianismo, "este é um trabalho para os apóstolos." (apud. Gay 1969: 521)
A segunda importante diferença entre o Cristianismo e a religião dos Philosophes diz respeito às relações entre a religião e a "cidade" (ou, em outras palavras, a esfera da sociedade política). O leitor deve recordar que, no início, eu fiz referência às formulações de Tocqueville e Carl Becker a respeito de uma espécie de "cidade dos Philosophes", ou seja, uma comunidade espiritual que unia os intelectuais franceses na "igreja invisível" de Diderot. A metáfora da cidade é muito importante aqui, remetendo-nos à polêmica de Santo Agostinho com pensadores e estadistas pagãos, motivo pelo qual o bispo de Hipona escreveu A Cidade de Deus.
O objetivo inicial de Agostinho era responder àqueles que culpavam a recente cristianização do Império Romano – recorde-se que Constantino se convertera por volta do ano 312 d.C. – por sua decadência. Na obra, o filho de Santa Mônica argumenta que, para além da diversidade observável de nações, línguas e culturas humanas, a divisão mais fundamental no seio da humanidade é aquela entre os dois grupos que ele chamou, então, de "a cidade de Deus" e a "cidade dos homens".
É significativo que Agostinho tenha se valido de um conceito que servia para delimitar uma unidade política específica, a cidade, para descrever os dois grupos. Sendo um dos primeiros pensadores a refletir sobre o tema da sociedade civil na nova situação histórica surgida com a emergência da religião revelada, Agostinho achou por bem utilizar o vocabulário clássico da ciência política – que começara com Platão, passara por Aristóteles, e chegara ao mundo latino através de Marco Túlio Cícero – com o qual ele e os seus contemporâneos estavam familiarizados.
Mas, empregando uma mesma terminologia, Agostinho conferiu-lhe um sentido inteiramente novo, uma vez que a sua distinção entre os dois tipos de "cidade" era escatológica, e não política. Para a doutrina agostiniana, toda sociedade política inclui necessariamente membros das duas cidades. Nenhuma sociedade ou instituição visível poderia identificar-se exclusivamente com qualquer uma delas. Trata- se, para Agostinho, de uma distinção entre aqueles que estão e aqueles que não estão destinados à vida eterna junto a Deus, e não uma distinção entre membros e não- membros de uma determinada configuração sociopolítica. Os membros das duas cidades estão misturados naquilo que o Santo chamou de saeculum, o reino da existência temporal no qual tem lugar a arte da política.
No Livro VI de A Cidade de Deus, Agostinho expõe e refuta a doutrina de Marcus Varro, pensador romano que propusera uma divisão no campo da teologia em três subespécies: teologia mística, teologia natural e teologia civil. A "teologia civil", segundo Varro, "é aquela que os habitantes da cidade, e especialmente os sacerdotes, devem conhecer e pôr em prática. Ela contém informações sobre os deuses que devem ser adorados oficialmente..." (cf. Agostinho 2003: 235-236)
O objetivo de Agostinho em sua crítica a Varro era demonstrar precisamente a insensatez, da perspectiva cristã, de uma teologia ou religião civil, ou seja, de uma religião concebida em função da cidade. Varro representa no livro uma posição tradicional no mundo pagão, segundo a qual a cidade não poderia subsistir sem o seu componente sagrado, fundamento espiritual e força de coesão.
Recorde-se que Agostinho começou a escrever o seu opus magnum logo após a destruição e o saque de Roma pelos visigodos, em 410 d.C. Sua tentativa era a de responder às constantes críticas dirigidas ao Cristianismo pelos pagãos. Segundo estes últimos, o Cristianismo, adotado como nova religião de Estado, revelara-se de pouca serventia para a proteção do mesmo, sendo, em última análise, a causa de sua ruína. Refutando esse ponto de vista, por demais evidente para os seus contemporâneos, Agostinho argumenta que a verdade e o valor de uma religião não podem ser medidos por sucessos ou malogros em eventos mundano. Em suas palavras:
"O próprio Varro atesta que a razão para se escrever sobre 'assuntos humanos' antes dos 'assuntos divinos' era que as comunidades humanas vieram primeiro à existência, sendo as instituições divinas posteriores, e estabelecidas por aquelas. Mas não foi nenhuma comunidade terrena quem estabeleceu a verdadeira religião; a verdadeira religião, sem dúvida, foi quem estabeleceu a Cidade Celeste; e a verdadeira religião é concedida aos seus legítimos adoradores graças à inspiração e ao ensinamento do Deus verdadeiro, que lhes deu a vida eterna." (Agostinho 2003: 232)
Ora, a religião que os Philosophes pretendiam instaurar era precisamente a "falsa religião" criticada por Agostinho: uma religião instituída pelos homens em função da cidade; em suma, uma religião civil
Como se sabe, o último capítulo de O Contrato Social, de Rousseau, chama-se justamente "da religião civil" (Rousseau 1762[1834]: cap. 8). Ali, o filósofo genebrino dá prosseguimento à empreitada que, na teoria política moderna, começa com a tentativa de Hobbes de instituir uma teologia civil à la Marcus Varro, abolindo com isso a distinção agostiniana entre política e religião, uma vez que a primeira passaria, a partir de então, a englobar a última (cf. Strauss 1959[1988]: cap. 7; 1963).
Rousseau reconheceu sua dívida para com Hobbes, sugerindo apenas que o filósofo inglês não fora longe o suficiente, graças à sua fé no Cristianismo:
"De todos os autores cristãos, o filósofo Hobbes é o único a ter enxergado a doença e o remédio, o único a ter ousado propor a união das duas cabeças da águia, e de tudo remeter à unidade política, sem a qual nenhum Estado ou governo será jamais bem constituído. Mas ele deveria ter percebido que o espírito dominante do Cristianismo era incompatível com o seu sistema, e que o interesse do padre seria sempre mais forte que o do Estado." (Rousseau 1762[1834]: 153 – grifos meus). 
Mas o que Rousseau pareceu não notar à época é que Cristianismo do filósofo inglês já era uma versão, por assim dizer, secularizada. Bem antes do pensador genebrino, Hobbes já percebera o perigo que o Cristianismo representava para a autoridade política terrena. Em Do Cidadão, publicado nove anos antes de O Leviatã, ele perguntava: "O que pode ser mais pernicioso a qualquer Estado [commonwealth, no original] do que ter seus cidadãos impedidos de obedecerem a seus príncipes por medo de castigos eternos?" (Hobbes 1642[1998]: 135).
Rousseau não gostava do Cristianismo justamente por aquilo que, para Agostinho, constituía a força e a verdade únicas daquela religião. O Cristianismo era tudo menos uma religião da cidade e, portanto, não poderia fornecer as bases espirituais para o novo "contrato social" pretendido pelo Philosophe. Como ele próprio explicou, revelando preocupação análoga à de Hobbes: 
"Essa religião [o Cristianismo] não mantém qualquer relação particular com o corpo político (...) Longe de ligar os corações dos cidadãos ao Estado, desprende-os, como de todas as coisas da terra. Não conheço nada mais contrário ao espírito social." (ibid. p. 155)
A crítica de Rousseau ao Cristianismo prossegue também segundo termos semelhantes aos que, séculos antes, foram empregues por Maquiavel e, séculos depois, por Nietzsche. Em última análise, tratava-se de, contrariando a doutrina agostiniana e retomando a de Marcus Varro, avaliar a religião em função da cidade. 
[Nota: Em verdade, Nietzsche não estava interessado na ordem política. O seu problema não era a "cidade", e sim a restauração do vigor espiritual no ser humano. De todo modo, a soteriologia nietzscheana era também coletiva, a 'alma' da espécie humana, por assim dizer, tendo prioridade frente à alma individual.] 
Daquela perspectiva, o Cristianismo é usualmente avaliado como "fraco","espiritual", "escapista". Mesmo a idéia nietzscheana de uma "moralidade de escravos" já fora antecipada por Rousseau em seu ataque àquela religião: 
"O cristianismo é uma religião de todo espiritual, preocupada unicamente com as coisas do céu. A pátria do cristão não é deste mundo. É certo que ele cumpre o seu dever, mas fá-lo com uma profunda indiferença no que concerne ao bom ou mau êxito de seus cuidados. Uma vez que nada se lhe tenha a reprovar, a ele pouco importa irem as coisas bem ou mal aqui embaixo. Se o Estado floresce, o cristão mal ousa desfrutar da felicidade pública; ele receia orgulhar-se da glória de que goza o seu país; se o Estado perece, ele abençoa a mão de Deus que se abate sobre o povo (...) O cristianismo prega unicamente servidão e dependência. Seu espírito é bastante favorável à tirania, para que esta se não sirva com freqüência dele. Os verdadeiros cristãos são feitos para serem escravos; e eles o sabem e em hipótese nenhuma se amotinam; esta vida breve tem muito pouco preço aos seus olhos." (ibid. pp. 156-157 – grifos meus).
Depois de atacar o caráter antissocial do Cristianismo, Rousseau procurou estabelecer os princípios de uma religião adequada aos interesses da cidade. Sua religião civil nada mais é que uma atualização da teologia civil de Hobbes, apenas que, em lugar do soberano absoluto como centralizador dos poderes espiritual e temporal, Rousseau reserva à "vontade geral" o papel de absoluto, fonte de onde emana o poder soberano. A "vontade geral", mais do que a vontade de uma maioria, é algo como uma entidade superior, indivisível e infalível. Ela é um poder absoluto e transcendente ao corpo social. Ela é, enfim, um dos mais explícitos substitutos do Deus abraâmico de que se tem notícia. Como escreveu Albert Camus: "A vontade geral é, em primeiro lugar, a expressão da razão universal, que é categórica. Nasceu o novo Deus." (Camus 1951[1999]: 142).
Obedecendo à "vontade geral", o Estado, tal qual um deus encarnado, passa a ter o poder sobre a vida humana, tornada, assim, uma mera concessão pública (cf. Rousseau 1762[1834]: II, 5). Eis os princípios da religião civil rousseauniana:
"É conveniente ao Estado que cada cidadão possua uma religião que o faça amar os seus deveres; todavia, os dogmas dessa religião só interessam ao Estado e a seus membros enquanto se relacionam com a moral e os deveres que aquele que a professa é forçado a cumprir para com outrem (...) Há, pois, uma profissão de fé puramente civil cujos artigos compete ao soberano fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade, sem os quais é impossível ser-se bom cidadão ou súdito fiel. Conquanto não se possa obrigar ninguém a crer, pode-se banir do Estado quem neles não acreditar; pode-se bani-lo, não como ímpio, mas como insociável, como incapaz de amar sinceramente as leis, a justiça, e de imolar à necessidade a vida e o dever. E se alguém, depois de haver reconhecido publicamente esses mesmos dogmas, comporta-se como se os não aceitasse, que seja punido de morte, pois cometeu o maior dos crimes: ter mentido perante as leis. Os dogmas da religião civil devem ser simples, em pequeno número, enunciados com precisão, sem explicações nem comentários. A existência da Divindade poderosa, inteligente, benfazeja, previdente e providente, a vida futura, a felicidade dos justos, o castigo dos perversos, a santidade do contrato social e das leis: eis os dogmas positivos. Quanto aos dogmas negativos, reduzo-os a um único: é a intolerância, implícita nos cultos que excluímos." (Rousseau 1762[1834]: 158-159 - grifos meus)
Apesar de ter sido celebremente associada ao nome de Rousseau, a noção de "vontade geral" já havia sido desenvolvida por Diderot em seu verbete sobre "direito natural" na Encyclopédie (cf. Diderot 1777), a um esboço do qual Rousseau tivera acesso. No verbete sobre "economia", publicado naquele mesmo volume da Encyclopédie, Rousseau reconhecia a sua dívida, remetendo o leitor ao artigo de Diderot, que fora "a fonte deste grande e luminoso princípio" (cf. Rousseau 1777: 810) - o princípio da volonté générale.
As formulações de Diderot a respeito da noção servem para esclarecer a terceira grande diferença, mencionada anteriormente, entre o Cristianismo e a religião dos Philosophes - esta sacralizando a espécie humana em detrimento do indivíduo; aquele, enfatizando a relação do indivíduo com a eternidade. Escreveu Diderot:   
"As vontades particulares são suspeitas; elas podem ser boas ou más. Mas a vontade geral é sempre boa: jamais se equivocou, jamais equivocar-se-á (...) Quem quer que medite atentamente sobre o que precede, convencer-se-á que: 1) o homem que escuta apenas a sua vontade particular é o inimigo da espécie humana; 2) a vontade geral é, dentro de cada indivíduo, um ato de entendimento, que raciocina no silêncio das paixões, e que o homem pode exigir de seu semelhante, assim como este poderá exigir-lhe; 3) esta consideração da vontade geral da espécie, e do comum desejo, é a regra de conduta relativa de particular para particular dentro da mesma sociedade." (Diderot 1777: 384-385) 
Sem colocar tanta ênfase na razão quanto o colega, Rousseau também achava que a moralidade humana era essencialmente pública. Em lugar da consciência individual como lócus do juízo moral, ambos os Philosophes elevavam a volonté générale ao estatuto de fonte absoluta daquele juízo. Nesse sentido, prosseguiam eles, mutatis mutandis, as iniciativas de Maquiavel - e, mais tarde, de Hobbes - de circunscrever a moralidade humana ao domínio imanente da política. Se, para Maquiavel e Hobbes, o Príncipe ou Leviatã representavam o critério absoluto para a definição do bem e do mal – não havendo outro que lhes fosse superior –, para Diderot e Rousseau, este critério seria o da "vontade geral" soberana. 
Se, para Hobbes, o pecado mortal era a guerra civil – que representava o adoecimento do corpo político –, para Diderot e Rousseau o pecado mais grave é a desobediência civil, significando uma sublevação da vontade individual contra a vontade geral. "Se alguém, depois de haver reconhecido publicamente estes mesmos dogmas [da religião civil], comporta-se como se os não aceitasse", diz Rousseau, "que seja punido de morte, pois cometeu o maior dos crimes." Contra o pecado capital, aplique-se a pena capital.
A apologia iluminista do caráter público e civil da moral fica especialmente clara no tratamento que Rousseau dá à idéia de "compaixão" (pitié). Ao contrário dos moralistas britânicos, para quem a compaixão (compassion) era uma virtude social (isto é, uma qualidade natural dos indivíduos em sociedade), para o Rousseau do Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi les hommes, a compaixão aparece como um sentimento natural apenas no "estado de natureza". Ali, a compaixão contribuiria para a preservação da espécie humana, ao moderar a força do "amor a si" (l'amour de soi). No "estado de sociedade", ao contrário, a compaixão era substituída pelo nocivo sentimento de "amor próprio" (l'amour propre), uma degeneração do "amor a si", que destrói a liberdade e igualdade naturais, sujeitando a humanidade ao trabalho, servidão e miséria (cf. Himmelfarb 2004: 172-173).
Na novela Émile, Rousseau estabeleceu algum grau de "sentimento íntimo" como base não da compaixão, mas do "amor a si". Quando identificamo-nos com outra pessoa, escreveu o Cidadão de Genebra, e sentimos que estamos, em alguma medida, nessa pessoa, é para não sofrer que desejamos que ela não sofra. "Interesso-me por ela graças ao amor a mim." (Rousseau 1762b[1817]: 224, n. 15). 
E assim Rousseau formulou o seu princípio de justiça: "O amor aos homens derivado do amor a si: eis o princípio da justiça humana." (ibid.)
Como aponta Himmelfarb, as virtudes sociais não são dadas naturalmente a Emílio. Ele precisa aprendê-las ao envolver-se com pessoas menos afortunadas. Mas ele deve aprender também que "seu primeiro dever é para consigo próprio." Na obra, Emílio é instruído por seu tutor a exercer as virtudes sociais não em relação a indivíduos particulares, mas para com a "espécie", com o "conjunto da humanidade" (cf. Himmelfarb 2004: 173). Nas palavras de Rousseau:
"Para impedir que a compaixão degenere-se em fraqueza, é preciso generalizá-la, estendê-la a todo o gênero humano. Deve-se, portanto, e por amor a nós mesmos, ter compaixão para com a nossa espécie mais do que para com o nosso próximo." (Rousseau 1762b[1817]: 244 – grifos meus).
O "amor à espécie" acima do "amor ao próximo": eis a síntese perfeita do abismo que separa a religião dos Philosophes e o Cristianismo. Segundo Himmelfarb, não obstante as muitas diferenças entre Rousseau e os demais Philosophes, todos eles adotam um mesmo modus operandi: a tendência a generalizar as virtudes, a sobrepor o "conjunto da humanidade" ao indivíduo, a "espécie" ao próximo. O "bem comum dos homens", para Rousseau e os demais iluministas, era mais do que a simples soma dos bens dos homens individuais. E, sobretudo, "o bem comum dos homens" não significava o bem dos homens comuns (Himmelfarb 2004: 174)
Não há, em Émile, nenhuma menção ao homem comum, membro da canaille. Émile era de origem nobre, e sua educação estava a cargo de um preceptor particular. Já o homem pobre, para Rousseau, não carecia ser educado, pois sua condição fornecia-lhe uma educação compulsória, dispensando qualquer outra. Ao falar sobre educação pública no verbete "Économie", Rousseau não tinha em mente o ensino tradicional da matemática, ciências, literatura etc. Por "educação pública", referia-se ele à disciplina moral e social que o Estado deveria impor a jovens e crianças (Himmelfarb 2004: 174-175).
Rousseau acreditava que a educação era algo muito importante para ser deixada aos pais. "Não se deve abandonar às luzes e preconceitos dos pais a educação de seus filhos", dizia ele, "pois ela importa ao Estado mais que aos pais." E concluía: "O Estado permanece, e a família perece." (Rousseau 1777: 818).
Dentre os Philosophes, Rousseau foi talvez aquele que maior influência exerceu sobre os revolucionários de 1789. Tal influência deveu-se justamente à proposta de uma "religião civil", com todos os elementos doutrinários, ritualísticos e demiúrgicos que encerrava. Em 1793, por exemplo, municiado com a concepção rousseuniana de "educação pública", Robespierre apresentou à Convenção um plano de educação compulsória a ser adotado nas escolas, com o objetivo declarado de proteger as crianças da influência maligna de seus pais reacionários (cf. Himmelfarb 2004: 183).
Ecos da sacralização do Estado promovida por Rousseau podem ser observados também no famoso pronunciamento do abade Sieyès, O que é o Terceiro Estado?, divulgado às vésperas da Revolução, onde se lia: "A Nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, e ela é a própria Lei." (Sieyès 1789: 111). De modo similar, Robespierre declarou que "o povo sempre vale mais do que os indivíduos... O povo é sublime, mas os indivíduos são fracos." (apud. Himmelfarb 2004: 184)
Aos instaurar a "República da Virtude" (eufemismo para o Terror jacobino), Robespierre seguia a proposta rousseauniana de "fazer reinar a virtude", entendida como a "conformidade da vontade particular à vontade geral." (Rousseau 1777: 814). "Estou convencido", disse Robespierre a respeito de sua proposta educacional, "da necessidade de uma completa regeneração e, se posso me expressar assim, de criar um novo povo." (apud. Himmelfarb 2004: 185). Mais uma vez, o líder jacobino pretendia pôr em prática um sonho vislumbrado por seu mestre e "professor da humanidade", como Rousseau era por ele chamado (cf. Johnson 1990: 12). Sonho este que consistia em nada menos que recriar a natureza humana: 
"Aquele que ousa empreender instituir um povo deve sentir-se em posição de mudar, por assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por si mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual este indivíduo receba, de uma certa maneira, a sua vida e o seu ser; de alterar a constituição do homem para forçá-la a substituir uma existência parcial e moral pela existência física e independente que recebemos da natureza." (Rousseau 1762[1834]: 57 – grifos meus).
A religião civil de Rousseau trazia consigo alguns dos principais elementos do Gnosticismo dos primeiros séculos da Era cristã, a começar pela insatisfação com a natureza humana atual e a tentativa de criar uma nova. Como explica Tocqueville a respeito da Revolução Francesa: 
"Como tendia à regeneração do gênero humano mais que à reforma da França, ela acendeu uma paixão que, até então, as mais violentas revoluções políticas jamais tinham sido capazes de produzir. Inspirou o proselitismo e fez nascer a propaganda. Assim, pôde ela guardar aquele ar de revolução religiosa que tanto espantou os seus contemporâneos; e, mais ainda, tornar-se ela própria uma espécie de nova religião, imperfeita, sem dúvida, sem Deus, sem culto e sem outra vida, mas que, no entanto, como o islamismo, inundou toda a terra com os seus soldados, seus apóstolos e seus mártires." (Tocqueville 1856: 43).
Compreende-se melhor, a esta altura da análise, porque o Cristianismo implicava um incômodo existencial para a religião civil dos Philosophes. Esta era uma versão moderna da velha "religião da cidade" do mundo pagão, contra a qual, precisamente, o Cristianismo se constituíra (cf. Fustel de Coulanges 1864[2000]: 167 ss.)
Como sugere Arnold Toynbee em An Historian's Approach to Religion (Toynbee 1956), o Cristianismo nasceu em oposição à auto-adoração do homem, especialmente em sua forma coletiva, o culto ao Estado e à comunidade. O autor traça uma tipologia universal das religiões humanas segundo o critério de seus "objetos" de devoção. Haveria, sob essa ótica, três espécies de religiões: as religiões que adoram a Natureza; as religiões que adoram o próprio Homem; e, por fim, as "religiões superiores", que adoram uma Realidade Absoluta, a qual não se confunde nem com a Natureza nem com o Homem, mas que está neles e, ao mesmo tempo, além deles. Em sua forma coletiva, as "religiões do Homem" constituíram-se como cultos a comunidades "paroquiais", que, eventualmente, como foi o caso de Atenas e Roma, tornaram-se comunidades "ecumênicas". Tais "religiões de estado", explica o autor, surgiram em função da necessidade de sanções sagradas como garantia da ordem pública. Após a desintegração da República Cristã, o Estado Moderno teria surgido com o espírito da antiga religião civil pagã (cf. Toynbee 1956: cap. 16).
Nesse sentido, o Leviatã de Hobbes e a volonté générale de Rousseau são emanações do poder absoluto da coletividade, fonte da moral e da experiência de mysterium tremendum, como diria Rudolf Otto (1979[2007]: cap. 4). São elementos de "religiões políticas" (cf. Gurian 1964; Voegelin 1986; Linz 2004; Hardtwig 2001; Gentile 2006; Azevedo 1981; Meira Penna 1985).
A Revolução Francesa foi a primeira delas. Seu fundamento tendo sido a "revolta metafísica" de que fala Camus. Com ela, teve início o "esforço desesperado para fundar, ainda que ao preço do crime, se for o caso, o império dos homens." (Camus 1951[1999]: 41). Mas ela não obteve sucesso em romper definitivamente com a cosmovisão cristã. Uma vez que os Philosophes acreditavam que a moralidade era independente do Cristianismo (cf. Himmelfarb 2004: 153), eles tentaram destruir a velha religião mas manter alguma moralidade absoluta, apenas transferindo-a da consciência individual para a "vontade geral". A moralidade iluminista era essencialmente pública ou política. Contrariando Maquiavel nesse ponto, Rousseau acreditava plenamente na união entre moralidade e política. Aqueles que separavam as duas esferas, dizia ele, não compreendiam nada nem de uma nem de outra (cf. Becker 1932: 104). 
A antirreligiosidade do Iluminismo francês era, por conseguinte, menos um anticristianismo do que um pseudocristianismo. Uma mistura confusa entre a cidade terrena e a cidade Celeste: a Cidade dos Intelectuais, em que a religião e a política estariam, desde então, eternamente fundidas; em que a própria política tornar-se-ia sagrada, como quis Feuerbach. 
O século XX foi o ápice da previsão - ou maldição - feuerbachiana, com o surgimento das maiores religiões políticas da humanidade: o internacional-socialismo e o nacional-socialismo. Não por acaso, ele foi, até hoje, o mais sangrento século de nossa história. Quando a política passa a ser compreendida numa chave soteriológica, os adversários passam a ser vistos como "impuros", os opositores como "malignos", toda restrição ao poder como "pecado"... 
E a deputada trambiqueira do PSOL como “mártir”.

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