quinta-feira, 24 de julho de 2014

A morte e a morte de Ariano Suassuna

Ariano morreu duas vezes. O tempo do show business, da moda e da velocidade de comunicação não era mesmo o tempo de Suassuna. Este nosso tempo decidiu, com a pressa costumeira, antecipar o fim daquele que, em verdade, foi o seu último e mais vigoroso inimigo. 

Com a calma e o vagar típicos da alma sertaneja, o bravo filho do norte ainda cismou de ficar - para o nosso bem, não o dele -, mas é provável que, deste feita, Deus e Nossa Senhora da Compadecida é que tenham perdido a paciência conosco... "Cuida que lá embaixo já não o merecem, você, este nosso filho querido que ora torna à casa celeste", terão dito.

E, de fato, não vínhamos fazendo por merecê-lo.

Perguntado, em uma ocasião, quais eram os dez maiores romances da literatura universal, Suassuna respondeu:

"O senhor está falando com um arcaico. O número de escritores bons e excepcionais é reduzido. Os dez são somente sete: Dom Quixote, Crime e Castigo, O Idiota, Os Demônios, Os Irmãos Karamázov, Guerra e Paz e Em Busca do Tempo Perdido." (link)

Vê-se que, numa época de inclusão populista e falta de critérios (onde qualquer perna-de-pau é chamado de craque; qualquer palpiteiro, de escritor; qualquer pichador, de artista), Suassuna era um juiz rigoroso, e não se envergonhava de sê-lo, ciente de que o Bem e o Belo costumam andar muito próximos.


"As pessoas que julgam antiquada qualquer referência à moral, normalmente se envergonham de usar os critérios de bem e mal em qualquer julgamento, no estético em particular", escreveu Ariano. E disse mais: 

"Na minha época de juventude passei, como todo mundo, por uma fase em que julguei ter me desvencilhado de Deus e dos conceitos de bem e mal. Até o dia em que, lendo Dostoiévski, encontrei uma frase de Ivan Karamazov, que dizia: 'Se Deus não existe, tudo é permitido'. Descobri, na mesma hora, que as normas morais ou tinham um fundamento divino, absoluto, ou não tinham qualquer validade, porque ficariam dependendo das opiniões e paixões de cada um." (link)

Ariano não tinha medo de julgar. Não barateava conceitos como os de "literatura", "arte", "cultura". Jamais cedeu à tentação demagógica de menosprezar o povo brasileiro, encerrando-o em guetos de sub-cultura. Ariano tinha o povo em alta conta. Julgava-o digno do melhor: de Dostoiévski, Tolstói, Proust, Machado de Assis (este por inteiro, sem "simplificações"). Só ele podia dizer, com autoridade e graça, a uma geração que já não o sabe, que funk não é música, que a cultura pop é um lixo, que um Gregório Duvivier não é escritor, que hip hop não é poesia, que Madonna é uma débil mental.

Cultura, para Ariano, significava alta cultura. Ele era a nossa ponte viva entre os autos de Gil Vicente e o melhor da literatura brasileira contemporânea. Queria fazer-nos participar do grande diálogo universal da humanidade consigo mesma. É nesse espectro atemporal, eterno, alheio aos modismos e ao tráfico de influências, que ele via o Brasil. Percebe-se o quão equivocados estavam aqueles que o tomavam apenas por um regionalista. A televisão bem que tentou exotizá-lo e prendê-lo dentro de uma "periferia" qualquer. Mas o espírito de Ariano Suassuna era o exato oposto do Esquenta, da Regina Casé. 

A pátria da qual Ariano faz parte não é uma democracia popular. Não há ingresso mediante sistema de cotas nessa pátria, e quem a ela pertence genuinamente logo reconhece os impostores, por mais marketing, lobby e influência tenham estes a lhes amparar. A pátria de Ariano é a pátria dos grandes escritores, de ontem e de hoje, dos que foram tocados pela graça. A língua de Ariano é a língua da grande literatura. A Cultura de Ariano não é a "cultura" da Lei Rouanet.

Ariano foi, fundamentalmente, o último bastião da alta cultura brasileira, uma idéia que desapareceu do horizonte mental do país, seja nos rincões mais miseráveis da pátria, seja nas mais abastadas elites culturais, econômicas e políticas. O mau gosto brasileiro, hoje, não tem classe, nem cor, nem gênero: ele está em toda parte. 

O bom filho de João Pessoa via na paisagem nordestina de sua obra o que ela tinha de mais universal e humano. "O ser humano é o mesmo em qualquer lugar, em qualquer tempo, em qualquer que seja a sua condição. Você pode ser rico ou pobre, mas os problemas que afetam verdadeiramente o ser humano são os mesmos", escreveu (link).

Foi-se um homem de bom gosto e boa experiência. Um universalista, mas não abstratista. O derradeiro cruzado a nos proteger, impávido na última trincheira, contra a "invasão vertical dos bárbaros" (na expressão de Mário Ferreira dos Santos), já consumada em outras frentes. Bárbaros ou novos bárbaros, no sentido de Ortega y Gasset: "Este nuevo bárbaro es principalmente el profesional más sabio que nunca, pero más inculto también — el ingeniero, el médico, el abogado, el científico."

Querem saber a falta que faz Ariano Suassuna? Não é preciso. Todos iremos senti-la de maneira trágica, com o agravamento das nossas piores aflições hodiernas: o isolamento cultural, a tribalização e, no limite, a total falta de comunicação ensejada pelo culto obsessivo dos particularismos e das idiossincrasias.

Ah! Quão bom seria poder trazer Ariano de volta com a gaita de Chicó... Mas duvido que Deus e Nossa Senhora desgrudem do homem assim que ele garrar numa boa conversa. Já quanto ao Chifrudo, consta que passou a cuidar pessoalmente da cultura brasileira, e que, em breve, patrocinará o roqueiro Tico Santa Cruz em sua nova carreira de escritor, com entrevistas no Jô e na Marília Gabriela, além de menções honrosas na novela das nove. 

Ariano perdeu, enfim, para "Caetana", a irremediável. Azar o nosso, que não o soubemos reter e que, infiéis e inconstantes, já na semana que vem o trocaremos por um assunto, assim, mais novo e palpitante. Eis a nossa triste sina: a de, escravos do tempo, lidarmos sempre muito mal com os mensageiros do eterno...

terça-feira, 20 de maio de 2014

Safatle e o novo. De novo.


"A Providência anda devagar, mas o diabo sempre urge." (John Randolphe Roanoke)

E Safatle propõe o novo. E se Safatle e o PSOL são "o novo", eu sou o Papa. 

Safatle, eu sei o que você fez no verão passado. Essa idéia do "novo" em política é mais velha do que a coleção de LPs da Inezita Barroso. Ela só emociona os incautos. 


As propostas do "novo" em política - A Nova Ordem, o Novo Homem, a Nova Sociedade - sempre, sempre mesmo, resultaram em carnificina. A política é a arte da prudência, como nos ensina Russell Kirk. É o respeito pela tradição e pelas lições do passado. A verdade não nasceu ontem. Veritas filia temporis.



Mas Safatle propõe o novo. De novo. Ele julga representar uma esquerda pura, a verdadeira, enfim, e pede-nos mais um voto de confiança. Imagina termos esquecido que, antes dele, tantos já ecoaram a mesma ladainha; tantos já se colocaram como representantes do novo contra as velharias e sobrevivências do passado. Stálin e Trótski viviam dizendo representar o novo e a "verdadeira" revolução, acusando-se mutuamente de "reacionários". A querela foi encerrada com o irrefutável argumento da picareta. É sempre assim.



Não existem soluções e sínteses definitivas em política. A política é uma dialética interminável, um exercício de convivência dos heterogênos e contrários. É um campo de perpétua coetaneidade. Não há, neste espaço negociado, "passado" e "futuro". Não há Era de Aquário. Não há panacéia. Não há, não pode haver, substituições irreversíveis. Como escreveu Edmund Burke, "a sociedade humana é um contrato entre os vivos, os mortos e os que estão para nascer." Não há posição privilegiada, fora do tempo e do espaço, de onde se possa julgar o avanço ou atraso, o arcaísmo ou vanguardismo, das posições políticas alheias. Nada pode ser mais trágico do que a aplicação de uma linguagem estética à política. 



Mas Safatle propõe o novo. Pensa que vai nos fisgar com o palavrório fluido e estetista de maio de 1968, com essa mistura perniciosa entre política e arte. Até parece, mangão. Conheço bem esse papo de "let a thousand flowers bloom". Sei bem onde termina o "sin perder la ternura jamás". Aprendi que o lirismo meloso dos progressistas ergue-se sobre uma pilha de cadáveres. Quando vais com o fubá, Safatle, já voltei com a broa.



Safatle recita "criatividade" e "novas experiências". E eu respondo: vai fazer experiências com as tuas negas, ô Vladimir. Largue de safatleza. Como sugeriu magistralmente o João Pereira Coutinho em recente entrevista:



"A política não é um luxo; não é uma actividade 'criativa', onde devemos esperar 'a imaginação ao poder'. A imaginação e a criatividade devem ser cultivadas noutras esferas da conduta humana. Na intimidade. No futebol. Nas artes. Na culinária. Mas a política lida com a vida de seres humanos. A primeira exigência que se deve fazer ao poder político é ele não confundir a vida de terceiros com as tintas que usamos numa tela. A segunda é ele não interferir com a forma como as pessoas, livremente, pintam a sua tela."

Eu tenho medo do novo, Safatle. Se tú és o novo, então, tenho pânico. Vade retro com tua vanguarda e tua criatividade. 

terça-feira, 8 de abril de 2014

Parla!


Em Brasília, defronte ao palácio do Planalto, eis que um objeto imenso, de cor escura, com não menos que 5 metros de altura por 5 de largura, repousa sobre uma vasta base de mármore de carrara. Vê-se de longe aquela grande e imponente massa negra, que desponta no horizonte qual um escotoma no campo visual de quem olha para a vastidão do planalto central. 


Os que do vulto se aproximam notam de imediato a consistência plasmática, apenas para, ato contínuo, discernir a variedade de tons, do amarronzado ao negro, passando pelo cobre. Tais propriedades que à visão se apresentam, não obstante, chegam atrasadas em relação ao que permite averiguar o olfato - o cheiro forte, nauseabundo, acre, já não deixa margens para dúvidas: trata-se de um pitolô de cocô, um genuíno e colossal cagalhão.


Na placa de mármore sobre a qual descansa a greda, dizeres informam tratar-se de uma obra de arte, de autoria do presidente honorário Luís Inácio Lula da Silva. E ali, em letras garrafais, lê-se o seguinte: O MINISTÉRIO DA VERDADE INFORMA QUE A PRESENTE ESCULTURA SUPERA, EM TERMOS DE BELEZA, HARMONIA, ENGENHO E GRANDIOSIDADE, O DAVID DE MICHELANGELO.

Depois de um momento inicial de escândalo - natural quando nos deparamos com peças de vanguarda artística, garantem os especialistas -, um crítico de arte, em entrevista ao Fantástico, sedimenta a opinião pública definitiva a respeito da matéria:



"As pessoas tendem a reagir mal diante de inovações artísticas, sobretudo quando o artista é alguém famoso e celebrado em outro ramo de atividade. Veja bem, dizer que a obra do digníssimo presidente honorário supera o David de Michelangelo talvez soe como exagero para críticos mais conservadores, mas o que importa é que toda obra de arte tem o seu valor e a sua importância histórica. Há ainda muito preconceito elitista contra artistas novos, sobretudo aqueles que, vindo do povo, como o presidente Lula, ousam desafiar os cânones da assim chamada [e o crítico faz o gesto de aspas com os dedinhos] alta cultura."


E assim foi que o extraordinário monte de bosta converteu-se em patrimônio histórico e artístico nacional, atestado pelo IPHAN. Hordas de peregrinos vão, diariamente, apreciar e reverenciar esse monumento à cultura brasileira. O único inconveniente é ter de disputar espaço com milhares de moscas varejeiras subitamente aficcionadas por arte moderna...


Das Virtudes e Vícios do Ceticismo

Em maio de 2012, o autor destas linhas frequentava um curso preparatório para o difícil e concorrido concurso do Itamaraty. Faziam três...