"Só
a política salva", diz a deputada do PSOL com a boca na botija (ver aqui). O dinheiro desviado não era para ela,
mas para a ação política. E a ação política, sabe-se, é sagrada.
É claro
que a senhora Janira Rocha, a deputada em questão, não tirou isso de sua
própria cabecinha. O caminho percorrido até que essa ideia pudesse ser dita
assim de maneira tão explícita foi pavimentado por muitos intelectuais e
apóstolos da política como religião. De fato, a ideia atravessa toda a nossa
história contemporânea, desde, pelo menos, o século XVIII. A fala da deputada
confirma a acertada previsão de Ludwig Feuerbach - que marcaria tragicamente todo
o século XX - de que a política tornar-se-ia a nova religião.
Pretendo,
nesse artigo, analisar a origem daquela ideia e por que ela teve sempre no
Cristianismo o seu maior obstáculo.
* * *
A revolta
contra a transcendência não pode deixar de produzir substitutos. "O homem
acredita quer num deus, quer num ídolo. Não há uma terceira opção!", dizia
Max Scheler (1960: 399).
A
Revolução Francesa parece ter confirmado a verdade daquele axioma. Ali, de
maneira quase caricata, elementos centrais da doutrina e da missa cristãs foram
parodiados e convertidos em exóticos cultos seculares. Tendo lugar em catedrais
como a Notre Dame, os cultos iam desde batismos e catecismos cívicos até
prostrações penitentes diante da "Santa Igualdade" ou da "deusa Razão"
(cf. Lehmann da Silva 1985: 25). Uma nova religião, tendo a razão humana como
divindade e os Philosophes como apóstolos, surgia no horizonte
como uma aurora de esperança e redenção.
Em O
Antigo Regime e a Revolução, Alexis de Tocqueville já notara o caráter de
religião substitutiva da Revolução Francesa (Toqueville 1856). Segundo o
pensador francês, ao contrário do padrão de usual de revoluções civis e
políticas – que implicam sempre uma pátria ou território nos quais se encerram
–, a Revolução Francesa não teve um território próprio e, mais do que isso, o
seu efeito foi apagar do mapa todas as antigas fronteiras. Acima de todas as
nacionalidades, ela formou uma "pátria intelectual comum", da qual os
homens de todas as nações podiam tornar-se cidadãos. Como escreveu Carl Becker
a respeito dos guias espirituais da Revolução: "Os Philosophes demoliram
a Cidade de Deus, de Santo Agostinho, apenas para reconstruí-la com novos
materiais." (Becker 1932: 31)
Não havia
nos anais da história, segundo Tocqueville, uma única revolução política com
as mesmas características da Revolução Francesa. Estas ter-se-iam observado
apenas em revoluções religiosas. Por isso, Tocqueville achava
que era às revoluções religiosas que a Revolução Francesa deveria ser comparada
se se pretendesse captar a sua substância e essência. Em suas palavras:
"A
revolução francesa é, pois, uma revolução política que operou à maneira, e
assumiu o aspecto, das revoluções religiosas. Note-se por quais traços
particulares e característicos ela veio a parecer-se com as últimas: ela não
apenas se difunde como aquelas, mas, como elas, penetra por meio da pregação e
da propaganda. Uma revolução política que inspira o
proselitismo." (Tocqueville 1856: 40)
O
componente religioso da Revolução – a pregação, a propaganda, o proselitismo –
ficou ao encargo dos Philosophes, que desejavam pôr fim à antiga
religião francesa (o Catolicismo) ou, ao menos, purificá-la à maneira dos
milenaristas medievais. Com suas próprias mãos (e com as penas que nelas
traziam), eles pretenderam fazer da cidade dos homens uma cidade celeste,
substituindo, nos termos de Agostinho, o "amor a Deus" pelo
"amor próprio".
A maior
parte dos Philosophes tinha plena consciência de sua tarefa de
substituir os antigos sacerdotes religiosos na função de conduzir a humanidade
rumo a um paraíso, neste caso, terreno. Sendo os mais novos
protagonistas do que Dumézil chamou de "casta sacerdotal" -
correspondendo também ao sentido amplo que Julien Benda conferiu à palavra
"clerc" (clérigo) -, eles passaram a elaborar os princípios
abstratos e os valores transcendentes substitutivos – "razão",
"igualdade", "vontade geral" – necessários à instituição
daquilo que Rousseau chamou de religião civil (Rousseau
1762[1834]: cap. 8).
Um dos
mais importantes princípios abstratos do Iluminismo francês foi, certamente,
a razão. Este fetiche iluminista vinha ocupar o lugar
da graça cristã na nova doutrina espiritual. Ninguém menos que
Diderot afirmou-o no verbete "Philosophe" da Encyclopédie: "a
razão é, para o filósofo, aquilo que a graça é para o cristão. A graça impele o
cristão a agir, a razão impele o filósofo." (apud. Himmelfarb 2004:
152).
Logo,
tratava-se para os Philosophes de assumir as funções
sacerdotais outrora exercidas pela religião tradicional, considerada, a
partir de então, uma espécie de rival da emergente "religião da
humanidade". Mais do que um protesto contra o caráter opressor e
autoritário da instituição clerical francesa da época – que também teve o
seu papel –, a ojeriza daqueles intelectuais frente ao Cristianismo
explica-se melhor, portanto, por uma questão de rivalidade espiritual e disputa
pela alma dos homens.
No seu
livro, Tocqueville comenta que "dentre as paixões que nasceram daquela
Revolução, a primeira a se acender, e última a se extinguir, foi a paixão
irreligiosa." (Tocqueville 1856: 31). Tal "paixão irreligiosa"
significava, na prática, um profundo anticristianismo por parte dos Philosophes. E
se, à exceção de Condorcet, a maioria daqueles intelectuais já havia morrido
quando a Bastilha veio ao chão, a verdade é que suas idéias inspiraram a
violência revolucionária contra membros de igrejas, conventos e mosteiros
franceses. Obras como A Religiosa, de Diderot, viriam a
provocar um efeito explosivo naquele verão de 1789.
Como
mostra Jean Dumont em A Revolução Francesa e os Prodígios do Sacrilégio (cf.
Dumont 1984: 187-335), as primeiras manifestações violentas das turbas
revolucionárias voltaram-se inicialmente não contra nobres e aristocratas, mas
contra bispos, arcebispos, padres e freiras:
"A
primeira manifestação de violência revolucionária foi reservada à Igreja. No
início do verão de 1789, esta violência não havia em absoluto visado o rei ou
os aristocratas, mas, desde os dias 24 e 25 de junho, o bispo de Beauvais,
deixado num estado semi-inconsciente, e o arcebispo de Paris (...) que,
apedrejado, escapou com vida graças à agilidade dos cavalos de sua
carruagem (...) Megeras e trabalhadores braçais, após forçarem a entrada
dos conventos, lançaram-se sobre as religiosas, agredindo-as e flagelando-as
até arrancar-lhes sangue, e durante horas a fio. Assim foram tratadas as
Visitandinas (dois conventos), as Recoletas, as Filhas do Precioso Sangue,
as Filhas do Calvário, as Filhas da Santa Genoveva, e as Filhas da
Caridade..." (Dumont 1984: 203-204)
Os Philosophes não
foram revolucionários políticos. Não eram republicanos, nem tampouco
pretenderam destruir a monarquia ou a classe aristocrática (cf. Himmelfarb
2004: 149-187; Dumont 1984: 188-197). Como se sabe, muitos deles - como, por
exemplo, Diderot e Voltaire - defendiam um "despotismo esclarecido"
(expressão da época, aliás, e não uma criação posterior de historiadores).
Havia nessa defesa muito de gratidão e interesse pessoal. Afinal, os Philosophes costumavam
ser paparicados, festejados, consultados e mesmo financiados por monarcas
europeus. "Como resistir a um rei vitorioso, poeta, músico, filósofo, e
que, ainda por cima, parece adorar-me?", questionava-se Voltaire,
referindo-se a Frederico II, rei da Prússia. O mesmo poderia ter perguntado
Diderot a respeito de Catarina da Rússia.
Mas, para
além do encanto dos iluministas parisienses com aqueles monarcas (e
vice-versa), havia um significativo princípio filosófico por trás da apologia
do despotismo esclarecido. Como afirma Gertrude Himmelfarb, o despotismo esclarecido,
do ponto de vista dos intelectuais franceses, era uma tentativa de entronizar a
razão, corporificada na pessoa de um déspota a ser "esclarecido",
justamente, pelas luzes dos Philosophes. (cf. Himmelfarb 2004:
163). Era uma troca, uma aliança entre o poder político-militar e o poder
"clerical" (no sentido de Benda).
Assim, se
os Philosophes ansiavam por algum tipo de revolução, esta não
dizia respeito à estrutura político-social da França do século XVIII, mas à
estrutura espiritual da nação. "As revoluções se fazem nos espíritos antes
que nas coisas", dizia Albert Mathiez, historiador marxista da Revolução
Francesa (apud. Dumont 1984: 187).
A
distinção entre duas revoluções ocorrendo no interior da Revolução – uma
revolução religiosa ("nos espíritos"), inspirada diretamente
pelos Philosophes, e uma revolução política ("nas
coisas"), que teve menos relação com as suas idéias – explica-se, em larga
medida, pelas características particulares assumidas pelo Iluminismo francês,
que o distinguia, por exemplo, do Iluminismo britânico. Tocqueville descreveu
bem a diferença:
"Enquanto,
na Inglaterra, aqueles que escreviam sobre o governo e aqueles que governavam
estavam misturados - os primeiros introduzindo na prática as novas idéias,
os últimos ajustando e circunscrevendo as teorias em função dos fatos -, na
França, o mundo político restava como que dividido em duas províncias separadas
e incomunicáveis. Na primeira, administrava-se; na segunda,
estabeleciam-se os princípio abstratos sobre os quais toda a
administração deveria se fundar. Aqui, eram tomadas as medidas particulares
indicadas pela rotina; lá, eram proclamadas as leis gerais, sem que
jamais fossem levados em conta os meios pelos quais aplicá-las: a uns, a
condução dos negócios; aos outros, o direcionamento das inteligências."
(Tocqueville 1856: 244-245 – grifos meus).
Era
certamente num "direcionamento das inteligências" – ou, poder-se-ia
dizer, numa condução espiritual – que Voltaire parecia estar
pensando quando escreveu a um amigo, em 1764:
"Tudo
o que eu observo tem lançado as sementes de uma revolução que virá
inevitavelmente, e que eu não terei o prazer de testemunhar. Os franceses
sempre chegam atrasados, mas ao menos chegam. Gradativamente, as luzes se
espalharam a tal ponto que irão irromper na primeira oportunidade, e então
haverá grande comoção. As novas gerações têm sorte; elas testemunharão grandes
feitos." (apud. Himmelfarb 2004: 181).
A nova
constituição espiritual, que viria a fundar a ordem revolucionária emergente,
elaborar-se-ia não apenas contra a Igreja, mas contra as bases constitutivas
do Cristianismo. Para os iluministas franceses, o Cristianismo era nada
menos que uma religião torpe. Mesmo Voltaire – que nunca foi um
materialista ateu como d‘Holbach, Helvétius ou Lamettrie,
demonstrando, ao contrário, uma devoção deísta a uma divindade
sobrenatural – mostrou-se extremamente combativo ao Cristianismo,
ainda que, até a década de 1760, ele tenha atenuado a sua retórica anticristã
ocultando-a sob a aparência de mero anticlericalismo. Como explica Peter Gay:
"Voltaire
trabalhou em silêncio, cultivou a sua raiva, e esperou – ele podia esperar.
Entrementes, mascarou publicamente a sua fúria anticristã como sincero
anticlericalismo. Foi apenas muito mais tarde, por volta de 1760, que Voltaire
rejeitou toda transigência e jogou fora muito de sua cautela. Acontecera muita
coisa, tanto com o movimento quanto com ele. Escritores radicais foram
perseguidos, e Enciclopedistas dedicados sofreram constrangimentos; a era da
cruzada anticristã acelerou-se." (Gay 1966: 390)
Voltaire
acreditava que a destruição do Cristianismo era mais importante do que a
construção de uma religião substitutiva. À questão sobre o que seria posto no
lugar da velha religião, ele respondia: "O quê? Um animal feroz suga o
sangue de minha família; eu digo que é preciso livrar-se da besta e me
perguntam o que se deve pôr no lugar?" (cf. Gay 1966: 391).
Foi por
aquela época, em torno de 1760, e com objetivo de "livrar-se da
besta", que Voltaire começou a usar o célebre "Écrasez l'Infâme"
["Esmagar a Infame"] como assinatura pessoal, ao final de cartas e
artigos. Tratava-se de um eficaz apelo aos brios dos combatentes da cruzada
anticristã. Por tudo isso, Voltaire foi homenageado por Diderot, que, em 1762,
chamou-o de "sublime, honorável e estimado anti-Cristo". Nas palavras
de Gay:
"Nenhum
epíteto seria mais adequado: uma simples visada na corrente de panfletos que
jorrou de Ferney nos últimos dezesseis anos da vida de Voltaire revela um
asco pelo Cristianismo beirando quase a obsessão. Intérpretes que restringem 'a
infâmia' à intolerância, ao fanatismo, ou ao Catolicismo romano recusam uma
conclusão à qual o próprio Voltaire chegara naqueles anos frenéticos: era de se
esperar que todo homem sensato e honrado nutrisse verdadeiro horror à seita
cristã (ibid.)."
A
rejeição iluminista ao Cristianismo resultava de algumas características
fundamentais deste último, que contrariavam fortemente o conteúdo espiritual da
religião dos Philosophes. Em primeiro lugar, o Cristianismo é uma
religião universalista (no sentido de não respeitar fronteiras
socioeconômicas), ao contrário da religião dos Philosophes, que era
essencialmente elitista. Em segundo lugar, o Cristianismo é uma
religião associal, que transcende o domínio do sócius e da
"cidade", enquanto a religião dos Philosophes era
essencialmente civil e social. E, por último, o
Cristianismo é uma religião que fala ao indivíduo concreto em
sua relação com a Eternidade, ao passo que a religião dos Philosophes era
uma religião da espécie, ou do homem abstrato (hipostasiado
pelo Philosophe ele próprio) em sua relação com a posteridade
- "a posteridade é, para o filósofo, aquilo que o outro mundo é
para o homem religioso", escreveu Diderot em carta ao amigo Étienne
M. Falconet (Diderot 1766[1834]: 224). Estas diferenças devem ser
analisadas com mais detalhes.
Quando
Voltaire dizia que "era de se esperar que todo homem sensato e
honrado nutrisse horror pelo Cristianismo", ele não estava
pensando nas pessoas comuns. Estas, aos olhos de Voltaire e outros
eminentes Philosophes, não tinham como ser sensatas, nem honradas,
graças à sua condição de prisioneiras da ignorância e da superstição,
traços que os iluministas consideravam essenciais à religião tradicional. Na
apresentação da Encyclopédie, obra tida como instrumento para a
construção de uma era "filosófica" ou "racional", Diderot
deixava claro que a massa das pessoas comuns não faria parte da tal era.
"A massa genérica de homens não foi feita para promover, e sequer
compreender, esta marcha progressiva do espírito humano", dizia (apud.
Himmelfarb 2004: 154). No verbete "Multitude", o
enciclopedista foi ainda mais explícito em seu desprezo pelas massas:
"Desconfie
do julgamento da multidão em matéria de raciocínio e filosofia; sua voz é a da
malícia, da tolice, da desumanidade, da irracionalidade e do preconceito (...)
A multidão é ignorante e confusa (...) Desconfie de sua moral; ela não é capaz
de produzir ações fortes e generosas; ela é mais admirada que aprovada. O
heroísmo é quase uma loucura a seus olhos." (Diderot 1778: 522)
Para
Diderot, a população comum era "imbecil" (imbécile) em termos
de religião. Enquanto a superstição nacional, segundo o Philosophe,
estava à época decaindo, este bem-vindo desenvolvimento dificilmente chegaria
até "o populacho" (la canaille, como diziam de modo geral os
iluministas franceses). O povo (le peuple) era por demais "idiota,
bestial, miserável e ocupado" para se auto-iluminar. Não havia grandes
esperanças: "A quantidade de canaille mantém-se sempre
mais ou menos estável." Por isso, Diderot acreditava que a multidão
carecia – e careceria sempre – de uma religião repleta de rituais e fábulas
infantis, como seria o Cristianismo.
De fato,
a religião da razão era para poucos. Jamais poderia ela oferecer o encanto
e a ilusão que, segundo os intelectuais franceses, tanto agradavam à canaille.
As luzes estavam restritas a um pequeno grupo, uma "igreja invisível"
- assim Diderot o qualificava - cujos membros eram detentores de uma
gnose libertadora (cf. Gay 1969: 519-520). Concordando com Diderot, Voltaire
dizia que l'Infâme não era para "os homens
respeitáveis". Destinava-se à "canaille, para quem fora
feita." "Jamais tivemos a pretensão de levar as luzes a sapateiros e
serviçais", afirmava Voltaire, deixando clara a diferença entre a religião
dos Philosophes e o Cristianismo, "este é um trabalho para os
apóstolos." (apud. Gay 1969: 521)
A segunda
importante diferença entre o Cristianismo e a religião dos Philosophes diz
respeito às relações entre a religião e a "cidade" (ou, em outras
palavras, a esfera da sociedade política). O leitor deve recordar que, no
início, eu fiz referência às formulações de Tocqueville e Carl Becker a
respeito de uma espécie de "cidade dos Philosophes",
ou seja, uma comunidade espiritual que unia os intelectuais franceses na
"igreja invisível" de Diderot. A metáfora da cidade é
muito importante aqui, remetendo-nos à polêmica de Santo Agostinho com
pensadores e estadistas pagãos, motivo pelo qual o bispo de Hipona
escreveu A Cidade de Deus.
O
objetivo inicial de Agostinho era responder àqueles que culpavam a recente
cristianização do Império Romano – recorde-se que Constantino se convertera por
volta do ano 312 d.C. – por sua decadência. Na obra, o filho de Santa
Mônica argumenta que, para além da diversidade observável de nações,
línguas e culturas humanas, a divisão mais fundamental no seio da humanidade é
aquela entre os dois grupos que ele chamou, então, de "a cidade de
Deus" e a "cidade dos homens".
É
significativo que Agostinho tenha se valido de um conceito que servia para
delimitar uma unidade política específica, a cidade, para descrever
os dois grupos. Sendo um dos primeiros pensadores a refletir sobre o tema da
sociedade civil na nova situação histórica surgida com a emergência da religião
revelada, Agostinho achou por bem utilizar o vocabulário clássico da ciência
política – que começara com Platão, passara por Aristóteles, e chegara ao mundo
latino através de Marco Túlio Cícero – com o qual ele e os seus contemporâneos
estavam familiarizados.
Mas,
empregando uma mesma terminologia, Agostinho conferiu-lhe um sentido
inteiramente novo, uma vez que a sua distinção entre os dois tipos de
"cidade" era escatológica, e não política. Para
a doutrina agostiniana, toda sociedade política inclui necessariamente
membros das duas cidades. Nenhuma sociedade ou instituição visível poderia
identificar-se exclusivamente com qualquer uma delas. Trata- se, para
Agostinho, de uma distinção entre aqueles que estão e aqueles que não estão destinados
à vida eterna junto a Deus, e não uma distinção entre membros e não- membros de
uma determinada configuração sociopolítica. Os membros das duas cidades estão
misturados naquilo que o Santo chamou de saeculum, o reino da
existência temporal no qual tem lugar a arte da política.
No Livro
VI de A Cidade de Deus, Agostinho expõe e refuta a doutrina de
Marcus Varro, pensador romano que propusera uma divisão no campo da teologia em
três subespécies: teologia mística, teologia natural e teologia civil. A
"teologia civil", segundo Varro, "é aquela que os habitantes da
cidade, e especialmente os sacerdotes, devem conhecer e pôr em prática. Ela
contém informações sobre os deuses que devem ser adorados oficialmente..."
(cf. Agostinho 2003: 235-236)
O
objetivo de Agostinho em sua crítica a Varro era demonstrar precisamente a
insensatez, da perspectiva cristã, de uma teologia ou religião civil, ou seja,
de uma religião concebida em função da cidade. Varro representa no
livro uma posição tradicional no mundo pagão, segundo a qual a cidade não
poderia subsistir sem o seu componente sagrado, fundamento espiritual e força
de coesão.
Recorde-se
que Agostinho começou a escrever o seu opus magnum logo após a
destruição e o saque de Roma pelos visigodos, em 410 d.C. Sua tentativa era a
de responder às constantes críticas dirigidas ao Cristianismo pelos pagãos.
Segundo estes últimos, o Cristianismo, adotado como nova religião de Estado,
revelara-se de pouca serventia para a proteção do mesmo, sendo, em última
análise, a causa de sua ruína. Refutando esse ponto de vista, por demais
evidente para os seus contemporâneos, Agostinho argumenta que a verdade e
o valor de uma religião não podem ser medidos por sucessos ou malogros em
eventos mundano. Em suas palavras:
"O
próprio Varro atesta que a razão para se escrever sobre 'assuntos humanos'
antes dos 'assuntos divinos' era que as comunidades humanas vieram primeiro à
existência, sendo as instituições divinas posteriores, e estabelecidas por
aquelas. Mas não foi nenhuma comunidade terrena quem estabeleceu a verdadeira
religião; a verdadeira religião, sem dúvida, foi quem estabeleceu a Cidade
Celeste; e a verdadeira religião é concedida aos seus legítimos adoradores
graças à inspiração e ao ensinamento do Deus verdadeiro, que lhes deu
a vida eterna." (Agostinho 2003: 232)
Ora, a
religião que os Philosophes pretendiam instaurar era
precisamente a "falsa religião" criticada por Agostinho: uma religião
instituída pelos homens em função da cidade; em suma, uma religião
civil.
Como se
sabe, o último capítulo de O Contrato Social, de Rousseau, chama-se
justamente "da religião civil" (Rousseau 1762[1834]: cap. 8).
Ali, o filósofo genebrino dá prosseguimento à empreitada que, na teoria
política moderna, começa com a tentativa de Hobbes de instituir uma teologia
civil à la Marcus Varro, abolindo com isso a distinção
agostiniana entre política e religião, uma vez que a primeira passaria, a
partir de então, a englobar a última (cf. Strauss 1959[1988]: cap. 7; 1963).
Rousseau
reconheceu sua dívida para com Hobbes, sugerindo apenas que o filósofo inglês
não fora longe o suficiente, graças à sua fé no Cristianismo:
"De
todos os autores cristãos, o filósofo Hobbes é o único a ter enxergado a doença
e o remédio, o único a ter ousado propor a união das duas cabeças da
águia, e de tudo remeter à unidade política, sem a qual nenhum Estado ou
governo será jamais bem constituído. Mas ele deveria ter percebido que o
espírito dominante do Cristianismo era incompatível com o seu sistema, e que o
interesse do padre seria sempre mais forte que o do
Estado." (Rousseau 1762[1834]: 153 – grifos meus).
Mas o que
Rousseau pareceu não notar à época é que Cristianismo do filósofo inglês já era
uma versão, por assim dizer, secularizada. Bem antes do pensador genebrino, Hobbes
já percebera o perigo que o Cristianismo representava para a autoridade
política terrena. Em Do Cidadão, publicado nove anos antes de O
Leviatã, ele perguntava: "O que pode ser mais pernicioso a
qualquer Estado [commonwealth, no original] do que ter seus cidadãos
impedidos de obedecerem a seus príncipes por medo de castigos eternos?"
(Hobbes 1642[1998]: 135).
Rousseau não
gostava do Cristianismo justamente por aquilo que, para Agostinho, constituía a
força e a verdade únicas daquela religião. O Cristianismo era tudo menos uma
religião da cidade e, portanto, não poderia fornecer as bases espirituais
para o novo "contrato social" pretendido pelo Philosophe.
Como ele próprio explicou, revelando preocupação análoga à de Hobbes:
"Essa
religião [o Cristianismo] não mantém qualquer relação particular com o corpo
político (...) Longe de ligar os corações dos cidadãos ao Estado, desprende-os,
como de todas as coisas da terra. Não conheço nada mais contrário ao
espírito social." (ibid. p. 155)
A crítica
de Rousseau ao Cristianismo prossegue também segundo termos semelhantes aos
que, séculos antes, foram empregues por Maquiavel e, séculos depois, por
Nietzsche. Em última análise, tratava-se de, contrariando a doutrina
agostiniana e retomando a de Marcus Varro, avaliar a religião em função da
cidade.
[Nota: Em verdade, Nietzsche não estava interessado na ordem
política. O seu problema não era a "cidade", e sim a restauração
do vigor espiritual no ser humano. De todo modo, a soteriologia nietzscheana
era também coletiva, a 'alma' da espécie humana, por assim dizer, tendo
prioridade frente à alma individual.]
Daquela
perspectiva, o Cristianismo é usualmente avaliado como
"fraco","espiritual", "escapista". Mesmo a idéia
nietzscheana de uma "moralidade de escravos" já fora antecipada por
Rousseau em seu ataque àquela religião:
"O
cristianismo é uma religião de todo espiritual, preocupada
unicamente com as coisas do céu. A pátria do cristão não é deste mundo. É
certo que ele cumpre o seu dever, mas fá-lo com uma profunda indiferença
no que concerne ao bom ou mau êxito de seus cuidados. Uma vez que nada se lhe
tenha a reprovar, a ele pouco importa irem as coisas bem ou mal aqui
embaixo. Se o Estado floresce, o cristão mal ousa desfrutar da felicidade
pública; ele receia orgulhar-se da glória de que goza o seu país; se
o Estado perece, ele abençoa a mão de Deus que se abate sobre o povo
(...) O cristianismo prega unicamente servidão e dependência. Seu
espírito é bastante favorável à tirania, para que esta se não sirva com freqüência
dele. Os verdadeiros cristãos são feitos para serem escravos; e
eles o sabem e em hipótese nenhuma se amotinam; esta vida breve tem muito
pouco preço aos seus olhos." (ibid. pp. 156-157 – grifos meus).
Depois de
atacar o caráter antissocial do Cristianismo, Rousseau procurou estabelecer os
princípios de uma religião adequada aos interesses da cidade. Sua religião
civil nada mais é que uma atualização da teologia civil de
Hobbes, apenas que, em lugar do soberano absoluto como centralizador dos poderes espiritual
e temporal, Rousseau reserva à "vontade geral" o papel de
absoluto, fonte de onde emana o poder soberano. A "vontade geral",
mais do que a vontade de uma maioria, é algo como uma entidade superior,
indivisível e infalível. Ela é um poder absoluto e transcendente ao corpo
social. Ela é, enfim, um dos mais explícitos substitutos do Deus abraâmico de
que se tem notícia. Como escreveu Albert Camus: "A vontade geral é, em
primeiro lugar, a expressão da razão universal, que é categórica. Nasceu o novo
Deus." (Camus 1951[1999]: 142).
Obedecendo
à "vontade geral", o Estado, tal qual um deus encarnado, passa a ter
o poder sobre a vida humana, tornada, assim, uma mera concessão pública (cf.
Rousseau 1762[1834]: II, 5). Eis os princípios da religião civil rousseauniana:
"É
conveniente ao Estado que cada cidadão possua uma religião que o faça amar os
seus deveres; todavia, os dogmas dessa religião só interessam ao Estado e
a seus membros enquanto se relacionam com a moral e os deveres que aquele
que a professa é forçado a cumprir para com outrem (...) Há, pois, uma
profissão de fé puramente civil cujos artigos compete ao soberano fixar, não
precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de
sociabilidade, sem os quais é impossível ser-se bom cidadão ou súdito
fiel. Conquanto não se possa obrigar ninguém a crer, pode-se banir do Estado
quem neles não acreditar; pode-se bani-lo, não como ímpio, mas
como insociável, como incapaz de amar sinceramente as leis, a justiça,
e de imolar à necessidade a vida e o dever. E se alguém, depois de
haver reconhecido publicamente esses mesmos dogmas, comporta-se como se os
não aceitasse, que seja punido de morte, pois cometeu o maior dos
crimes: ter mentido perante as leis. Os dogmas da religião civil devem
ser simples, em pequeno número, enunciados com precisão, sem explicações
nem comentários. A existência da Divindade poderosa, inteligente, benfazeja,
previdente e providente, a vida futura, a felicidade dos justos, o castigo
dos perversos, a santidade do contrato social e das leis: eis
os dogmas positivos. Quanto aos dogmas negativos, reduzo-os a um único: é
a intolerância, implícita nos cultos que excluímos." (Rousseau
1762[1834]: 158-159 - grifos meus)
Apesar de
ter sido celebremente associada ao nome de Rousseau, a noção de "vontade
geral" já havia sido desenvolvida por Diderot em seu verbete sobre
"direito natural" na Encyclopédie (cf. Diderot
1777), a um esboço do qual Rousseau tivera acesso. No verbete sobre
"economia", publicado naquele mesmo volume da Encyclopédie,
Rousseau reconhecia a sua dívida, remetendo o leitor ao artigo de Diderot, que
fora "a fonte deste grande e luminoso princípio" (cf. Rousseau 1777:
810) - o princípio da volonté générale.
As
formulações de Diderot a respeito da noção servem para esclarecer a terceira
grande diferença, mencionada anteriormente, entre o Cristianismo e a religião
dos Philosophes - esta sacralizando a espécie
humana em detrimento do indivíduo; aquele, enfatizando a relação
do indivíduo com a eternidade. Escreveu Diderot:
"As
vontades particulares são suspeitas; elas podem ser boas ou más. Mas a vontade
geral é sempre boa: jamais se equivocou, jamais equivocar-se-á (...) Quem
quer que medite atentamente sobre o que precede, convencer-se-á que: 1) o homem
que escuta apenas a sua vontade particular é o inimigo da espécie humana; 2) a
vontade geral é, dentro de cada indivíduo, um ato de entendimento, que
raciocina no silêncio das paixões, e que o homem pode exigir de seu semelhante,
assim como este poderá exigir-lhe; 3) esta consideração da vontade geral da
espécie, e do comum desejo, é a regra de conduta relativa de particular para
particular dentro da mesma sociedade." (Diderot 1777: 384-385)
Sem
colocar tanta ênfase na razão quanto o colega, Rousseau também achava que a moralidade
humana era essencialmente pública. Em lugar da consciência individual como
lócus do juízo moral, ambos os Philosophes elevavam a volonté
générale ao estatuto de fonte absoluta daquele juízo. Nesse sentido,
prosseguiam eles, mutatis mutandis, as iniciativas de Maquiavel -
e, mais tarde, de Hobbes - de circunscrever a moralidade humana ao domínio
imanente da política. Se, para Maquiavel e Hobbes, o Príncipe ou Leviatã
representavam o critério absoluto para a definição do bem e do mal – não havendo
outro que lhes fosse superior –, para Diderot e Rousseau, este critério
seria o da "vontade geral" soberana.
Se, para
Hobbes, o pecado mortal era a guerra civil – que
representava o adoecimento do corpo político –, para Diderot e
Rousseau o pecado mais grave é a desobediência civil, significando
uma sublevação da vontade individual contra a vontade geral. "Se alguém,
depois de haver reconhecido publicamente estes mesmos dogmas [da religião
civil], comporta-se como se os não aceitasse", diz Rousseau, "que
seja punido de morte, pois cometeu o maior dos crimes." Contra o
pecado capital, aplique-se a pena capital.
A
apologia iluminista do caráter público e civil da moral fica especialmente
clara no tratamento que Rousseau dá à idéia de "compaixão" (pitié).
Ao contrário dos moralistas britânicos, para quem a compaixão (compassion)
era uma virtude social (isto é, uma qualidade natural dos indivíduos em
sociedade), para o Rousseau do Discours sur l'origine et les fondements
de l'inégalité parmi les hommes, a compaixão aparece como um sentimento
natural apenas no "estado de natureza". Ali, a compaixão contribuiria
para a preservação da espécie humana, ao moderar a força do "amor a
si" (l'amour de soi). No "estado de sociedade", ao
contrário, a compaixão era substituída pelo nocivo sentimento de "amor
próprio" (l'amour propre), uma degeneração do "amor a
si", que destrói a liberdade e igualdade naturais, sujeitando a humanidade
ao trabalho, servidão e miséria (cf. Himmelfarb 2004: 172-173).
Na
novela Émile, Rousseau estabeleceu algum grau de "sentimento
íntimo" como base não da compaixão, mas do "amor a si". Quando
identificamo-nos com outra pessoa, escreveu o Cidadão de Genebra, e sentimos
que estamos, em alguma medida, nessa pessoa, é para não sofrer
que desejamos que ela não sofra. "Interesso-me por ela graças ao amor a
mim." (Rousseau 1762b[1817]: 224, n. 15).
E assim
Rousseau formulou o seu princípio de justiça: "O amor aos homens derivado
do amor a si: eis o princípio da justiça humana." (ibid.)
Como
aponta Himmelfarb, as virtudes sociais não são dadas naturalmente a Emílio. Ele
precisa aprendê-las ao envolver-se com pessoas menos afortunadas. Mas ele deve
aprender também que "seu primeiro dever é para consigo próprio."
Na obra, Emílio é instruído por seu tutor a exercer as virtudes sociais não em
relação a indivíduos particulares, mas para com a "espécie", com
o "conjunto da humanidade" (cf. Himmelfarb 2004: 173). Nas
palavras de Rousseau:
"Para
impedir que a compaixão degenere-se em fraqueza, é preciso generalizá-la,
estendê-la a todo o gênero humano. Deve-se, portanto, e por amor a nós mesmos,
ter compaixão para com a nossa espécie mais do que para com o nosso
próximo." (Rousseau 1762b[1817]: 244 – grifos
meus).
O
"amor à espécie" acima do "amor ao próximo": eis a síntese
perfeita do abismo que separa a religião dos Philosophes e o
Cristianismo. Segundo Himmelfarb, não obstante as muitas diferenças entre
Rousseau e os demais Philosophes, todos eles adotam um mesmo modus
operandi: a tendência a generalizar as virtudes, a sobrepor o
"conjunto da humanidade" ao indivíduo, a "espécie" ao
próximo. O "bem comum dos homens", para Rousseau e os demais
iluministas, era mais do que a simples soma dos bens dos homens individuais. E,
sobretudo, "o bem comum dos homens" não significava o bem dos
homens comuns (Himmelfarb 2004: 174)
Não há,
em Émile, nenhuma menção ao homem comum, membro da canaille.
Émile era de origem nobre, e sua educação estava a cargo de um preceptor
particular. Já o homem pobre, para Rousseau, não carecia ser educado, pois sua
condição fornecia-lhe uma educação compulsória, dispensando qualquer outra. Ao
falar sobre educação pública no verbete "Économie",
Rousseau não tinha em mente o ensino tradicional da matemática, ciências,
literatura etc. Por "educação pública", referia-se ele à disciplina
moral e social que o Estado deveria impor a jovens e crianças
(Himmelfarb 2004: 174-175).
Rousseau
acreditava que a educação era algo muito importante para ser deixada aos pais.
"Não se deve abandonar às luzes e preconceitos dos pais a educação de seus
filhos", dizia ele, "pois ela importa ao Estado mais que aos
pais." E concluía: "O Estado permanece, e a família
perece." (Rousseau 1777: 818).
Dentre
os Philosophes, Rousseau foi talvez aquele que maior influência
exerceu sobre os revolucionários de 1789. Tal influência deveu-se justamente à
proposta de uma "religião civil", com todos os elementos
doutrinários, ritualísticos e demiúrgicos que encerrava. Em 1793, por exemplo,
municiado com a concepção rousseuniana de "educação pública",
Robespierre apresentou à Convenção um plano de educação compulsória a ser
adotado nas escolas, com o objetivo declarado de proteger as crianças da
influência maligna de seus pais reacionários (cf. Himmelfarb 2004: 183).
Ecos da
sacralização do Estado promovida por Rousseau podem ser observados também no
famoso pronunciamento do abade Sieyès, O que é o Terceiro Estado?,
divulgado às vésperas da Revolução, onde se lia: "A Nação existe antes de
tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, e ela é a própria
Lei." (Sieyès 1789: 111). De modo similar, Robespierre declarou que
"o povo sempre vale mais do que os indivíduos... O povo é sublime, mas os
indivíduos são fracos." (apud. Himmelfarb 2004: 184)
Aos
instaurar a "República da Virtude" (eufemismo para o Terror
jacobino), Robespierre seguia a proposta rousseauniana de "fazer reinar a
virtude", entendida como a "conformidade da vontade particular à
vontade geral." (Rousseau 1777: 814). "Estou convencido", disse
Robespierre a respeito de sua proposta educacional, "da necessidade de uma
completa regeneração e, se posso me expressar assim, de criar um novo
povo." (apud. Himmelfarb 2004: 185). Mais uma vez, o líder jacobino
pretendia pôr em prática um sonho vislumbrado por seu mestre e "professor
da humanidade", como Rousseau era por ele chamado (cf. Johnson 1990: 12).
Sonho este que consistia em nada menos que recriar a natureza humana:
"Aquele
que ousa empreender instituir um povo deve sentir-se em posição de mudar,
por assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por
si mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual
este indivíduo receba, de uma certa maneira, a sua vida e o seu
ser; de alterar a constituição do homem para forçá-la a
substituir uma existência parcial e moral pela existência física e independente
que recebemos da natureza." (Rousseau 1762[1834]: 57 – grifos meus).
A
religião civil de Rousseau trazia consigo alguns dos principais elementos do
Gnosticismo dos primeiros séculos da Era cristã, a começar pela insatisfação
com a natureza humana atual e a tentativa de criar uma nova. Como explica
Tocqueville a respeito da Revolução Francesa:
"Como
tendia à regeneração do gênero humano mais que à reforma da França, ela acendeu
uma paixão que, até então, as mais violentas revoluções políticas jamais tinham
sido capazes de produzir. Inspirou o proselitismo e fez nascer a propaganda.
Assim, pôde ela guardar aquele ar de revolução religiosa que tanto espantou os
seus contemporâneos; e, mais ainda, tornar-se ela própria uma espécie de nova
religião, imperfeita, sem dúvida, sem Deus, sem culto e sem outra vida, mas
que, no entanto, como o islamismo, inundou toda a terra com os seus
soldados, seus apóstolos e seus mártires." (Tocqueville 1856: 43).
Compreende-se
melhor, a esta altura da análise, porque o Cristianismo implicava um incômodo
existencial para a religião civil dos Philosophes. Esta
era uma versão moderna da velha "religião da cidade" do mundo
pagão, contra a qual, precisamente, o Cristianismo
se constituíra (cf. Fustel de Coulanges 1864[2000]: 167 ss.)
Como
sugere Arnold Toynbee em An Historian's Approach to Religion (Toynbee
1956), o Cristianismo nasceu em oposição à auto-adoração do homem,
especialmente em sua forma coletiva, o culto ao Estado e à comunidade.
O autor traça uma tipologia universal das religiões humanas segundo o critério
de seus "objetos" de devoção. Haveria, sob essa ótica, três espécies
de religiões: as religiões que adoram a Natureza; as religiões que adoram o
próprio Homem; e, por fim, as "religiões superiores", que adoram uma
Realidade Absoluta, a qual não se confunde nem com a Natureza nem com o Homem,
mas que está neles e, ao mesmo tempo, além deles. Em sua forma coletiva,
as "religiões do Homem" constituíram-se como cultos a comunidades
"paroquiais", que, eventualmente, como foi o caso de Atenas e Roma,
tornaram-se comunidades "ecumênicas". Tais "religiões de
estado", explica o autor, surgiram em função da necessidade de sanções
sagradas como garantia da ordem pública. Após a desintegração da República
Cristã, o Estado Moderno teria surgido com o espírito da antiga religião civil
pagã (cf. Toynbee 1956: cap. 16).
Nesse
sentido, o Leviatã de Hobbes e a volonté générale de
Rousseau são emanações do poder absoluto da coletividade, fonte da moral e da
experiência de mysterium tremendum, como diria Rudolf Otto
(1979[2007]: cap. 4). São elementos de "religiões políticas" (cf.
Gurian 1964; Voegelin 1986; Linz 2004; Hardtwig 2001; Gentile 2006; Azevedo
1981; Meira Penna 1985).
A
Revolução Francesa foi a primeira delas. Seu fundamento tendo sido a
"revolta metafísica" de que fala Camus. Com ela, teve início o
"esforço desesperado para fundar, ainda que ao preço do crime, se for o
caso, o império dos homens." (Camus 1951[1999]: 41). Mas ela
não obteve sucesso em romper definitivamente com a cosmovisão cristã. Uma vez
que os Philosophes acreditavam que a moralidade era
independente do Cristianismo (cf. Himmelfarb 2004: 153), eles tentaram destruir
a velha religião mas manter alguma moralidade absoluta, apenas transferindo-a
da consciência individual para a "vontade geral". A
moralidade iluminista era essencialmente pública ou política. Contrariando
Maquiavel nesse ponto, Rousseau acreditava plenamente na união entre moralidade
e política. Aqueles que separavam as duas esferas, dizia ele, não compreendiam
nada nem de uma nem de outra (cf. Becker 1932: 104).
A
antirreligiosidade do Iluminismo francês era, por conseguinte, menos um
anticristianismo do que um pseudocristianismo. Uma mistura confusa entre a
cidade terrena e a cidade Celeste: a Cidade dos Intelectuais, em
que a religião e a política estariam, desde então, eternamente fundidas; em que
a própria política tornar-se-ia sagrada, como quis Feuerbach.
O século
XX foi o ápice da previsão - ou maldição - feuerbachiana, com o surgimento das
maiores religiões políticas da humanidade: o internacional-socialismo e o
nacional-socialismo. Não por acaso, ele foi, até hoje, o mais sangrento século
de nossa história. Quando a política passa a ser compreendida numa chave
soteriológica, os adversários passam a ser vistos como "impuros", os
opositores como "malignos", toda restrição ao poder como
"pecado"...
E a
deputada trambiqueira do PSOL como “mártir”.
* * *
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