segunda-feira, 9 de maio de 2011

A deterioração do debate público no Brasil: o STF e a "união homoafetiva"

Em “O Conflito Magiar", artigo publicado em janeiro de 1849 na Nova Gazeta Renana, revista editada por Karl Marx, Friedrich Engels criticava movimentos de cunho nacionalista, em particular o pan-eslavismo, por suas inclinações contra-revolucionárias (cf. ENGELS, Friedrich. 1849[1956]. “Der Magyarische Kampf” [Neue Rheinische Zeitung, número 194, volume 13]. In: Karl Marx & Friedrich Engels. Werke, Band 6. Berlin: Dietz Verlag. pp. 165-175).


Seguindo a linha de pensamento de Marx, Engels acreditava que, na marcha histórica rumo ao comunismo, alguns povos estariam tão atrasados, que, para a construção da futura sociedade comunista, seria preciso passar sobre eles feito um trator. Engels pensava especificamente nos sérvios, nos escoceses das terras altas, nos bretões, nos bascos, entre outros. No artigo citado, Engels chamava todos aqueles povos de Völkerabfälle, que significa literalmente "lixo racial". Segundo o autor, estes povos seriam não apenas "atrasados", como também "reacionários" (e peço que o leitor guarde bem essas palavrinhas mágicas). 

A solução proposta por Engels para aqueles povos era uma só: gänzlichen Vertilgung - ou, traduzindo, "extermínio total". Das muitas palavras possíveis em alemão para "extermínio", Engels optou pelo substantivo feminino Vertilgung, com o sentido específico de "extermínio de parasitas ou pragas".

No século XIX, o tipo de pensamento exemplificado por Engels era bastante comum entre intelectuais e cientistas. Trata-se do chamado evolucionismo social - que viria a ser, mais tarde, conhecido como darwinismo social. Ele consiste na idéia de que a história humana, como um todo, caminha para um mesmo fim, e que algumas pessoas privilegiadas podem saber que fim é esse, determinando nos outros, em conseqüência, graus de evolução: quem está mais perto do fim, é avançado; quem está mais longe, é atrasado. 

O evolucionismo social, como se sabe, serviu como fundamento moral e filosófico para uma série de políticas brutais e genocidas, como as praticadas por algumas potências imperiais, que, acreditando conhecer o sentido evolutivo da história, não hesitaram em atropelar povos "atrasados" ao redor do planeta.

No século XX, a coisa ficou pior. A revolução russa deu início a um sistemático programa de extermínio, culminando no Grande Terror stalinista, que, cumprindo ao pé da letra os desígnios de Marx e Engels, eliminou milhões de "atrasados" e "reacionários", e especialmente os eslavos. Tudo, é claro, em nome da maravilhosa utopia comunista. Também em nome de uma utopia - o Terceiro Reich - os nazistas procuraram eliminar os "parasitas" que impediam o surgimento do Novo Homem. O resultado todos conhecem: seis milhões de judeus mortos..

Depois de todo esse banho de sangue, era de se esperar que os seres humanos fossem ter um pouco mais de cautela no emprego de idéias evolucionistas. E, de fato, no Ocidente do século XX, surgiu toda uma corrente de idéias - notadamente dentro da antropologia social - que criticou o evolucionismo, tanto acadêmica quanto politicamente.

Por tudo isso, fico perplexo em constatar com que sem-cerimônia os formadores de opinião no Brasil rotulam sumariamente fatos e pessoas de "atrasados" ou "avançados", dispensando-se de definir um critério claro de aferição. Foi o que se viu em relação à recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de aprovar por unanimidade a tal "união homoafetiva". A imensa maioria dos formadores de opinião brasileiros decretou que a decisão tinha sido um "avanço", contrastando-a com o "atraso" dessa questão no Poder Legislativo. 


Resta a pergunta: em que ponto privilegiado de observação estão colocadas tais pessoas para poder decretar tão peremptoriamente o sentido preciso dos fenômenos sociais? Para determinar o "atraso" ou "avanço" dos outros, é preciso ter cruzado a linha de chegada. No caso em questão, há mesmo uma linha de chegada? Que corrida é essa, afinal?

Nestes momentos em que há uma espécie de unanimidade em torno de um "avanço" histórico tido por inquestionável (o termo "decisão histórica" foi usada incessantemente por todos os meios de comunicação para se referir aos votos dos ministros do Supremo), quem quer que faça alguma ponderação ou reflexão mais cautelosa é tachado de "reacionário" ou "atrasado", e excluído, ato contínuo, do rol de pessoas respeitáveis, boas e - supra-sumo das qualidades morais - "progressistas". Com tamanha pressão e chantagem públicas, quem é que arriscaria ficar de fora da vanguarda moral da história? Quem gostaria de ser chamado de "atrasado"? Quem quer ser o último colocado na corrida?

Respondo: eu. Não ligo em ficar ao lado dos "atrasados" e dos "reacionários", mesmo porque sei que, ao longo da história, o conjunto dos "progressistas" e "avançados" inclui gente como Stálin, Hitler e Mao Tse Tung, para ficarmos apenas com os maiores genocidas de todos os tempos. Por outro lado, muita gente boa - mas muita mesmo! - já foi chamada de "reacionária". Dependendo do tipo de "progresso" que se tem em vista, ser "reacionário" é um dever. Logo, estou escaldado com essa conversa mole de "avanço" e "atraso". Não me importo em ocupar as últimas posições na "corrida" (marcha, escada, ladeira etc.), porque acho que a idéia de corrida ou marcha rumo a uma meta preestabelecida é, em si, produto de mentes delirantes.

A decisão do STF pareceu-me absurda, uma concessão inaceitável à agenda e linguagem do ativismo gayzista. Minhas razões serão expostas a seguir. Queria antes dizer que, como era de se esperar, quando ironizei o uso da expressão "união homoafetiva" pelo SFT - apontando a total improcedência do termo a não ser como forma de militância GLBT (ver este post anterior) -, um amigo chegou a questionar-me no Facebook: "Para que tanto ódio no coração, rapaz?". 

Eu tinha certeza que uma reação daquele tipo não tardaria. Ela tem sido comum no debate público nacional. Afinal, eu estava nadando contra a maré da "decisão histórica" do STF. Todas as pessoas boas e cheias de amor no coração estavam com o STF (já lá bem pertinho da linha de chegada). Só mesmo alguém com "ódio no coração" para torcer o nariz num momento mágico como aquele. Quando todos gritam "Yes, we can!", só mesmo um reaça hidrófobo para ousar sugerir que "No, we cannot!"

Este é, decerto, um procedimento fácil. Quando não concordamos com alguém, há sempre a possibilidade de sugerir que suas idéias são movidas por ódio visceral. Tal técnica oferece a dupla vantagem de, por um lado, desqualificar a priori a opinião de nosso interlocutor e, ainda por cima, reafirmar, por contraste, toda a bondade e generosidade do nosso próprio coração. Para completar, "ódio no coração" é, evidentemente, algo démodé; o "amor no coração" é que está na moda. Vocês não vêem a Lady Gaga? 

Mas, sendo fácil, aquele  procedimento é também intelectualmente débil, além de politicamente infantil. Em primeiro lugar, porque, se gente como Shakespeare e Dostoiévski sempre considerou o coração humano algo misterioso, eu é que não me meteria à besta de tentar descobrir o que vai no coração alheio. Em segundo lugar, o que vai no coração das pessoas não importa nada no que se refere a temas de interesse público. Se conseguissem me provar por A + B que Hitler ou Osama Bin Laden fizeram o que fizeram movidos por um profundo "amor no coração", ainda assim eu continuaria julgando-os monstros.

Eu, pessoalmente, acho que a orientação sexual de uma pessoa não deve restringir-lhe qualquer direito civil. Logo, penso que homossexuais que mantenham um relacionamento estável devem poder unir-se civilmente, gozando dos direitos daí resultantes - pensão, herança etc. - como qualquer outro cidadão

Este é o aspecto que parece-me ser o crucial, e que está na base de minhas críticas à decisão do STF. É na qualidade de cidadão brasileiro que o homossexual deve ter direito à união civil, e não na qualidade de homossexual. A sexualidade de uma pessoa, se não pode ser impeditiva de direitos, tampouco pode ser fonte de direitos. E se, por um lado, até posso concordar com o mérito da decisão do STF - que, na prática, deveria igualar os direitos de homossexuais e heterossexuais -, por outro, eu considero absurdo o vocabulário utilizado pelos ministros - um vocabulário que tratou o homossexualismo como um valor em si mesmo (por vezes, como que acima da sexualidade hétero), digno de direitos específicos. O uso do termo "união homoafetiva" foi uma estratégia simbólica para dourar a pílula do homossexualismo. A questão terminológica pode, à primeira vista, parecer irrelavante. Mas a prova de que não é irrelevante é a mudança em si: se o nome da coisa não importa, por que mudar de "homossexualidade" para "homoafetividade"? Trata-se aí, evidentemente, de uma estratégia de marketing político, que, enquanto tal, não deveria ter sido adotada por altos magistrados (a não ser que, eles próprios, fizessem parte da campanha de marketing, o que seria um total absurdo).

Mas, além da linguagem militante utilizada pelos ministros, o fato mesmo da questão ter sido decidida no STF parece-me totalmente anti-democrático e aventureiro. Tratou-se de uma tentativa de se fazer "justiça" - de ser "avançado" -, ao atropelo da Constituição e da separação dos poderes. Os ministros do STF assumiram a função de legisladores, legisladores, no caso, que não foram eleitos pela população.

É preciso reconhecer que o Brasil tem uma Constituição e que ela está acima das opiniões e vontades subjetivas de um ou outro. E a Constituição é explícita em relação ao que entende por família. No § 3 do Art. 226, lê-se: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".

O texto é taxativo, claro, explícito. Ao contrário do que sugeriram alguns ministros do Supremo, ele não é exemplificativo. Ele não deixa margem a interpretações. Para a aprovação da união civil entre homossexuais, seria preciso, inevitavelmente, mexer na Constituição. Logo, se fosse favorável à união civil entre homossexuais, o STF poderia, no máximo, ter apontado a necessidade da mudança na Constituição, mudança que é função do Legislativo.

Importa notar que não é por ser "atrasada" ou "reacionária" que a Constituição define a base da família como "união estável entre homem e mulher". Ela apenas está de acordo com a tradição imemorial das sociedades humanas ao longo da história, tradição que confere uma prioridade moral, filosófica, civil e religiosa à heterossexualidade, pelo simples fato de que a heterossexualidade gera humanidade (é embaraçoso ter que recordar, mas, sem o encontro fortuito de um espermatozóide com um óvulo, não há reprodução da espécie), ao passo que a homossexualidade não gera nada além de prazer aos que nela estão envolvidos. Prazer legítimo, sem dúvida, mas de interesse restrito.

Não estou sugerindo com isso que a Constituição jamais possa ser mudada de acordo com novos contextos históricos e sociais. Ela pode sim. Mas, nas sociedades democráticas, essa mudança cabe ao Poder Legislativo, cujos representantes são eleitos pela população. Eu, particularmente, creio que, no que se refere ao Art. 226, caberia uma emenda constitucional para estender a proteção do estado a relacionamentos homossexuais estáveis. Mas essa é apenas minha opinião. Ela não está acima do bem e do mal. Não sei se todos os brasileiros acham isso. Tampouco considero "atrasados" ou "reacionários" aqueles que, eventualmente, discordem de mim. Isso é democracia, caramba!. Se o Poder Legislativo, eleito pelo povo, não julgou pertinente o reconhecimento da união civil homossexual, paciência. Isto prova apenas que uma grande parte dos parlamentares é contrária à idéia. Como representantes eleitos, eles têm o direito e a legitimidade para tanto. Não há "atraso" nenhum nisso. O STF não tinha o direito de passar por cima do Legislativo. O Tribunal Federal pode ser Supremo, mas não é divino. 

Quem acredita estar na vanguarda da história, qualificando de "atrasada" toda opinião divergente parece-me ser um pseudo-democrata, um totalitário disfarçado de bonzinho e "progressista". Cheio de amor no coração, talvez, mas totalitário ainda assim.

Para que a emenda constitucional referente à união homossexual fosse concretizada, ela teria, repito, que ser sugerida por parlamentares, nunca pelos ministros do STF. Estes últimos são responsáveis por zelar pela Constituição, não por desqualificá-la ou burlá-la em nome de um suposto "progressismo". Neste último caso, o STF põe-se a serviço do "clamor que vem das ruas", que não se confunde com os interesses do conjunto da sociedade brasileira, representando apenas os desejos de uma militância organizada e barulhenta.

No caso específico, os votos dos ministros foram dados dentro do paradigma de combate ideológico contra a "heteronormatividade". O STF foi instrumento dos objetivos políticos da militância gayzista. Esta última, como argumento em outro post, está menos interessada em direitos civis do que em aumentar seu poder de polícia. Não por acaso, como mostra reportagem do Globo ("reportagem" talvez seja generosidade de minha parte), militantes gayzistas mal comemoraram a decisão do STF e já estavam preocupados em promover a aprovação do PL 122-06, projeto de lei que criminaliza a "homofobia". Quem imaginou que eles ficariam satisfeitos com a mera aquisição de direitos, enganou-se redondamente. Por que contentar-se com direitos, se, afinal de contas, a atual conjuntura mostra-se tão favorável à aquisição de poder?


Em última instância, creio que o STF foi instrumento do Poder Executivo, que, talvez como "nunca antes na história deste país", tem controlado e manipulado os 'movimentos sociais' e a militância organizada, por meio da distribuição de benesses ideológicas e/ou financeiras. 

Não sei ao certo, mas o que rola na rede é que, agora, "STF" já não significa "Supremo Tribunal Federal", mas "Soltando Toda a Franga". No Brasil de hoje, fica difícil saber se esse tipo de coisa é ou não uma piada. Devemos rir ou chorar?

5 comentários:

  1. Caro Flávio,

    quanto tempo! Já estava sentindo falta de um texto de sua autoria. Este está, para não variar, excelente.

    Para mim, ele é até reconfortante: sou advogado, estudei na UERJ, tenho toda aquela doutrina de Direito Constitucional capitaneada pelo Barroso como norte de aprendizado da disciplina - até porque ele, ou seus "padawans", integram todas as bancas de concurso que me interessam. E praticamente todos os meus conhecidos do meio jurídico aplaudiram de pé, tecendo elogios até exagerados à sustentação oral do professor. Que, de fato, foi excelente, como de costume em suas exposições, tanto orais quanto escritas. Mas eu não concordo e me sinto totalmente sozinho nessa.

    Aliás, assisti ao julgamento inteiro e senti uma certa vergonha alheia. O nível da maioria das sustentações foi sofrível, beirando o militantismo rasteiro (Maria Berenice que o diga...), e achei que o advogado da CNBB abordou a questão do pior ponto de vista possível. Uma pena mesmo. Não que isso tenha sido determinante; na nossa tradição ofialista, a oralidade é subestimada. O Plenário do STF acabou servindo só de palco para a panfletagem política mesmo, dado que aquele voto tão grotesco quanto ridículo do Ayres Britto, o "zen-Ministro", já estava pronto. Isso é normal, especialmente em casos complexos (em minha opinião, esse não era!); porém, do jeito que foi, ele poderia ter cochilado durante as sustentações orais. Nada do que fosse dito ali mudaria uma linha do seu voto.

    Foi um dos piores momentos para mim como estudante de direito. Me fez pensar em Hans Kelsen, o "positivista ultrapassado", e em como ele tinha razão: o direito é só moldura. Qualquer coisa o preenche, qualquer conteúdo político, ideológico e moral serve. Essa concepção foi combatida após o pós-guerra - afinal, dela se valeu o nazismo! - mas o fato é que o neoconstitucionalismo abriu as portas para certos voluntarismos, notadamente em democracias ainda imaturas como é a nossa.

    Bem, eu já participei ativamente dessa discussão em outros dois blogs que, apesar de suas abordagens particulares, concordam com opinião: o do Reinaldo Azevedo, que você já conhece, e um outro chamado “Construindo o pensamento”, que conheci por acaso. Se você me permitir, gostaria de trazer para cá o que neles postei. Fique à vontade para não publicar porque, já aviso, meus comentários não ficaram pequenos... certamente me estendi, mas é que esse julgamento me deixou com sensação de ouvir o soar de alguma das trombetas do Apocalipse... é sério, qual o limite agora? Você acompanhou as manobras asquerosas na votação frustrada do novo Código Florestal (11/05)? Quando o parlamento se apequena tanto como o nosso, por seus próprios deméritos, acaba virando uma mera “casa de tolerância”. E, ato-contínuo, o Executivo federal assume o papel de rolo compressor, ao passo que a Corte Constitucional vira a “tenda dos milagres”.

    Vou colar nos próximos comentários. Esses são os links para os posts pertinentes do blog que eu citei:

    http://construindoopensamento.blogspot.com/2011/05/o-casamento-gay-o-direito-e.html
    http://construindoopensamento.blogspot.com/2011/05/celebrando-estupidez-humana.html

    Abraços,

    Thiago - RJ

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  2. (Thiago – RJ): aqui começo!

    Respondendo a [dois outros leitores]:

    Caros, não há qualquer “contradição” entre o caput do art. 5º e o §3º do art. 226. Para demonstrar isso, é preciso se estender um pouquinho sobre Teoria da Constituição e dois princípios de hermenêutica jurídica que são especificamente constitucionais: unidade e concordância prática.

    A Constituição é norma fundamental e inaugural de uma ordem jurídica e esta, apesar ser plural, constitui uma unidade. Se o Estado é soberano, só pode existir um ordenamento jurídico válido e vinculante, e esse “ordenamento estatal (...) constitui um sistema cujos diversos elementos são entre si coordenados. (...) O elo de ligação entre esses elementos é a Constituição, origem comum de todas as normas. É ela, como norma fundamental, que confere unidade e caráter sistemático ao ordenamento jurídico.
    A idéia de unidade de unidade da ordem jurídica se irradia a partir da Constituição e também sobre ela se projeta” (citação: Luis Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição).

    A nossa sociedade é plural e nossa Constituição reflete esse pluralismo; porém, ela expressa um aglomerado de consensos mínimos, fundamentais, sem os quais a sociedade não consegue funcionar, não consegue erigir um Estado. Esse aglomerado forma um sistema que, obviamente, deve ser inteligido sistematicamente. A unidade na interpretação é mandatória justamente porque há uma pluralidade de concepções, de valores, albergados na Constituição sob a forma de normas-princípio e normas-regra. O princípio da unidade de interpretação é um desdobramento lógico do princípio da interpretação sistemática e condiciona o intérprete à harmonização dessas normas que, não raro, entram em tensão. Em suma, todas as normas constitucionais devem ser interpretadas de modo a se evitar contradições com outras normas constitucionais, para que elas não se anulem reciprocamente. E por que isso?

    Raciocínio lógico: as normas constitucionais são fruto do Poder Constituinte originário, que é, em sua complexidade, o resultado concreto de uma vontade unitária (daí a noção de consenso mínimo). Elas são geradas simultaneamente e não podem nunca estar em contraposição no momento de sua aplicação. Também não há hierarquia entre elas, sejam normas-regra, sejam norma-princípio, uma vez que, em direito, hierarquia é a idéia de que uma norma jurídica tem em outra norma jurídica, que lhe é superior seu fundamento de validade.

    Qual a conclusão desse raciocínio? NÃO HÁ CONFLITO ENTRE NORMAS CONSTITUCIONAIS ORIGINÁRIAS. NÃO HÁ CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE POSSÍVEL SOBRE NORMA ORIGINÁRIA (desculpem a caixa alta, não sei grifar).

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  3. A igualdade perante a lei, do caput do art. 5º, é plenamente compatível com o conceito de unidade familiar trazido pelo §3º do art. 226. São, ambas, normas originárias que têm o mesmo fundamento de validade: o Poder Constituinte Originário (que sequer é jurídico, é político, metajurídico; não há qualquer limitação jurídica a ele). Todo conflito de normas constitucionais originárias é aparente, não real, e o operador do direito deve buscar coordenar os bens jurídicos envolvidos para que nenhum se descaracterize. Para tanto deve buscar uma concordância prática entre as normas em (aparente) conflito.

    O sistema diz que todos serão iguais PERANTE A LEI, o que não é sinônimo de simplesmente “iguais”; é perante a lei, para efeitos de aplicação da lei. Não é iguais “na lei” - a lei pode e deve tratar desigualmente os desiguais, na JUSTA MEDIDA de sua desigualdade (e, mais uma vez, é a lei que dará os parâmetros de definição, ou definirá de pronto, o que vem a ser essa justa medida em casa caso). E o sistema também afirma que unidade familiar é homem mais mulher, e/ou qualquer um desses com seus filhos.
    Ora, é um sistema uno e harmônico, e a própria Constituição diferenciou a união “homem + mulher” de todas as demais possíveis e imagináveis, dizendo: “família é isso”. O art. 226 diz que a família é a base da sociedade e diz o que vem a ser família NO QUE CONCERNE AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

    Trocando em miúdos: concordo com o Reinaldo (que não é jurista mas é bom de lógica, o que já é mais de meio caminho andado para ser bom jurista). O conceito de unidade familiar do§3º do art. 226 foi o consenso fundamental possível quando da promulgação da Constituição. Não vejo como se interpretar a Constituição para entender que algo diferente de “homem + mulher, e seus eventuais descendentes” é família (juridicamente falando). Esse é o conceito e, por ser claro e taxativo, ele não comporta interpretação extensiva. Realizar essa ampliação vai resultar na atuação do STF como legislador positivo.

    Não é sequer possível dizer que houve mutação constitucional (modalidade informal de mudança no conteúdo material da Constituição), dado que esta só ocorre dentro das possibilidades hermenêuticas do próprio texto, do enunciado normativo. O texto continua o mesmo, mas a norma que dele se passa a extrair muda. Só que não se pode extrair um significado “contra-legem”: se o texto diz “azul”, pode-se ir do azul mais claro, quase branco, ao azul mais escuro, quase roxo; só não se pode chegar a “amarelo”!

    Depois comento sobre a Lei 9278/96 e o regime de casamento do Código Civil... é a mesma coisa, a ginástica hermenêutica está caindo numa atividade legiferante do Judiciário. O que tem que acontecer é a mudança do conceito constitucional via Emenda (esse conceito não é cláusula pétrea, na minha opinião).

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  4. Ao [leitor que havia feito menção ao princípio contramajoritário, relativo à jurisdição constitucional]:

    você só se esquece que não há antinomia entre normas originárias da Constituição (princípios da unidade e da concordância prática).

    Jamais se poderia afirmar, como se fez, que o §3º do art. 226 seria omisso, insuficiente ou meramente exemplificativo no que tange a dar concretude ou especificidade ao art. 3º - cuja redação é genérica a mais não poder. Ambos os dispositivos são válidos e compatíveis, devendo ser harmonizados pela via interpretativa. Só que sem ignorar (diria até atropelar) o sentido literal do enunciado normativo.

    Eu sei muito bem que não se deve interpretar (unicamente) literalmente enunciados normativos. Mas o sentido literal dos vocábulos é, ao mesmo tempo, ponto de partida e limite máximo para as técnicas e métodos da hermenêutica jurídica. O próprio Barroso afirma isso categoricamente em seus livros!

    Sinceramente, só consigo explicar a construção teórica feita no julgamento como sendo uma "má-fé do bem". Todos ali sabiam muito bem - isso ficou assentado em alguns votos! - que o conceito constitucional de família (que só existe para delimitar o que é família no que diz respeito à proteção do estado; só tem aplicação no que tange à esfera estatal) é EXPRESSO E TAXATIVO.

    Também é erro crasso falar em mutação constitucional, uma vez que essa, vou repetir aqui pela enésima vez, está limitada às REAIS possibilidades interpretativas do texto normativo. O que o STF decidiu ESTÁ FORA das possibilidades interpretativas do §3º do art. 226.

    Metaforicamente, lá está escrito: “família é ‘azul’”. Mutação constitucional é a possibilidade de se concluir que família pode ser qualquer tom de azul: há vinte anos, azul-bebê; há dez, azul-petróleo; hoje, azul-turquesa; daqui a dez anos, azul-marinho. Note bem: do enunciado normativo “azul”, extrai-se diversas normas, a depender do consenso social, do tempo histórico etc, mas nenhuma que se choque frontalmente com o sentido literal do vocábulo contido no enunciado normativo! Todos os tons de azul são, desculpe o truísmo, “azul”! Todavia, o STF decidiu: “apesar de estar definido que é ‘azul’, entende-se que também é ‘amarelo’, dado que ‘azul’ é insuficiente”. Insuficiente segundo quem?

    Na boa, desafio qualquer linguista, filólogo ou estudioso de letras a demonstrar que há mais de um sentido – a questão é semântica mesmo! – para a afirmação: “família é a união de homem e mulher”. Gostaria muito de ver a explicação de por que essa oração não significa “apenas homem e mulher”, significando, em verdade, “não apenas homem e mulher”. Ainda mais considerando o contexto sintático de todo o art. 226.

    Esse caminho argumentativo – Lewandowski o seguiu com sua tese da “enumeração exemplificativa” – é péssimo, não se sustenta. Tanto que a tese do Barroso foi outra: apesar do que está, sim, expressa, taxativa e literalmente definido, conceito dado de família é insuficiente para garantir (aí vem...) igualdade, dignidade de pessoa humana, não-discriminação. No §3º do art. 226 não houve o chamado “silêncio eloqüente”, o que equivaleria a dizer que família é, no que concerne ao estado, apenas aquilo, apenas “homem + mulher”. Teria havido omissão mesmo.

    Do subsolo da minha insignificância e da minha condição de ex-aluno do Barroso e leitor de suas obras (todas!), entendo o seguinte: essa tese é total e extremamente “de lege ferenda”. “Lex ferenda” é uma expressão latina que significa, literalmente, “lei futura”. É linguagem forense corriqueira, usada no sentido de “o que a lei deveria ser”, em oposição a “lex lata” – a lei que é, daí a expressão “de lege lata”. Por seu turno, a expressão “praeter legem” se refere a algo que está fora da definição, fora da lei, apesar de não ser propriamente ilegal.

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  5. Concluindo: a tese vencedora é tão escancaradamente “de lege ferenda”, tão desabridamente “praeter legem” que, considerando-se a dicção do §3º do art. 226, está quase no terreno do “contra legem”. Simplesmente fechou os olhos para a unidade e para a concordância prática do texto constitucional, preferindo-se realizar uma ginástica olímpica hermenêutica para se chegar a uma coisa que não está lá.
    .................
    Ufa! É isso, Flávio. Quando fiz esses comentários no blog do Reinaldo Azevedo, saí escrevendo conforme as coisas me vinham à mente. Portanto, isso aí está longe se estar completo ou de ter alguma polidez ou acabamento mais refinados. Só espero contribuir para um debate que, acho, é de extrema relevância e passa ao largo da discussão pública. Há pouquíssimos espaços, como esse aqui, onde se pode debater e contrapor idéias, sem ficar na mediocridade do argumento “ad homine” ou na militância canhestra.

    Querer que isso ganhe a imprensa, e que essa faça Jornalismo, então... “sonho de uma noite de verão”!

    Abraços,

    Thiago - RJ

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