"O ilustre Emir dos Crentes deve aprender história no curso primário antes de escrever 'Em Defesa da História' nos jornais burgueses de Brasília, Rio e São Paulo, essas mesmas folhas que acusa de colaborarem no 'festival do pensamento único que assola nossa imprensa'. Mas talvez tenha razão: o festival de pensamento único que assola nossa imprensa e o 'clima de impunidade' com idéias estrambólicas é a mesma orgia ideológica de que o comendador está, precisamente, gozando com seus comparsas..."
(José Osvaldo de Meira Penna, Jornal da Tarde, 1999)
Emir Sader é algo como um Australopithecus intelectual: ele recusa-se a sair da Guerra Fria, e move, ainda hoje, um combate ideológico incansável contra o capitalismo yankee. Sader já escreveu muitos textos contra o capitalismo (aliás, ele só escreve sobre isso, seja qual for o assunto manifesto do texto. Sader deve ser capaz de criticar o capitalismo até no cartão de natal que manda para a tia-avó), chegando, inclusive, a exaltar Hugo Chavez como um defensor dos pobres e excluídos venezuelanos contra as "elites" capitalistas e imperialistas.
Emir Sader é um herdeiro da tradição da esquerda hegeliana, de gente como Feuerbach, Marx, Engels e afins. Como todos aqueles pensadores, Sader também vê um sentido na história. Mas, ao contrário deles, o sentido da história para Sader é bem menos grandiloqüente. O ponto culminante da história humana já não será a sociedade sem classes ou a desalienação dos homens. Para Sader, o ponto culminante da história é a instauração de uma ordem social que obedeça ipsis litteris as diretrizes estabelecidas nos congressos internos do PT. Em lugar da sociedade sem classes, Sader sonha com a sociedade sem oposição.
Emir Sader é mais que um intelectual orgânico. Ele é um intelectual intestinal, um intelectual visceral, um intelectual de partido. Ele é a encarnação máxima desse escandaloso oxímoro que, no Brasil de hoje, tem se tornado cada vez mais freqüente: Sader é e sempre foi um intelectual do PT. (Aliás, como ele mesmo informa em seu Currículo Lattes, Sader é um "especialista em Lula", seja lá o que isso signifique).
No caso de Sader, de fato, nem se pode chegar a falar, como Julien Benda, em "traição dos intelectuais". Sader só poderia ser considerado um "intelectual" no sentido muito amplo que o termo ganhou hoje em dia, especialmente no Brasil, incluindo desde apresentadores de televisão e jornalistas, até, eventualmente, cantores, rappers e - por que não? - drag queens. Portanto, Sader não está propriamente traindo nada. Ele está fazendo exatamente aquilo que "intelectuais" como ele foram designados para fazer: guerra cultural, doutrinação ideológica, manipulação psicológica - em suma, a modelagem espiritual da sociedade, para que esteja "preparada" para aceitar docilmente os desígnios do governo. O problema, pois, não é realmente de Emir Sader. O problema é de uma sociedade que, por absoluta falta de parâmetros, o toma por intelectual legítimo, permitindo que se delegue a ele a direção de uma importante instituição cultural.
Em suma, não é difícil perceber que Emir Sader não quer refletir sobre ou compreender o que quer que seja, ele quer transformar a realidade para que ela se encaixe mais facilmente nos planos civilizacionais (e quiçá cósmicos! Recorde-se o incômodo de Lula com o fato de a Terra ser redonda) do PT. Ser "intelectual", no sentido em que o é Emir Sader, significa, na realidade, ser um agente de transformação social.
A entrevista em que Sader explica seus planos futuros para a Fundação é muito ilustrativa (ver aqui). Para começar, ele diz que quer incentivar a intelectualidade a produzir uma reflexão "mais contemporânea" sobre o Brasil. E, mais uma vez, percebe-se logo a distância que separa a atividade intelectual legítima - que, recordo Benda mais uma vez, recusa-se a sacrificar a busca pelos dados universais e permanentes da realidade às contingências temporais e interesses pragmáticos - daquilo que Sader chama de intelectualidade.
Sader acha que o pensamento, para ser relevante, ter que ser "atual". Ou seja, a atividade intelectual, tal como concebida por Sader, não se distingue fundamentalmente da moda e do show business. E, em segundo lugar, a atividade intelectual tem que refletir o contexto espaço-temporal em que é exercida - no caso, o Brasil contemporâneo. Ou seja, a intelectualidade que adentrar a Casa de Rui Barbosa terá que produzir alguma coisa atual e brasileira, o equivalente do Pré-Sal na esfera da cultura.
Mas não é só isso. Sader exige mais da intelectualidade. Diz ele:
"Existe uma nova maioria política e social no país, que eu diria que é progressista, mas que ainda é sensível a temas obscurantistas, como se viu na campanha com a discussão sobre o aborto. É preciso consolidar essa maioria política e social com uma nova sociabilidade, novos valores, de solidariedade. É preciso tratar de ter políticas culturais que consolidem na cabeça das pessoas as razões pelas quais o Brasil está melhor. Ajudá-las a tomar consciência social"
Aí fica claro o sentido da história para Sader. Ele está convicto que existem certos temas "obscurantistas" que, a despeito de todo o progresso social, econômico e moral trazido pelo governo do PT, ainda (!!!) persistem na mentalidade de muitas pessoas. Ou seja, como os velhos filósofos da história, o intelectual governamental projeta uma progressão histórica e, colocando-se no ponto culminante de tal escalada, avalia, com superioridade, os supostos avanços e retrocessos de todos que vêm vindo atrás.
Ele não gosta da discussão sobre o aborto e quer nos convencer de que o mundo ideal será aquele em que ninguém mais se preocupe com isso. Os que insistirem no tema receberão a pecha de "obscurantistas" (será que Sader realmente sabe o significado da palavra?) e serão banidos do paraíso terreno prometido por Emir Sader, o Messias.
Sader nem se dá conta de que uma grande parcela da sociedade brasileira (talvez a maioria) é contra o aborto e, nisso, ela está em plena harmonia com a nossa lei penal, que o pune como delito. A questão só surgiu durante a campanha eleitoral porque a então candidata Dilma Roussef, agora presidente e chefe de Sader, mentiu sobre sua posição, com fins eleitoreiros. Uma boa parcela da população percebeu a fraude mas, infelizmente, graças à atuação de "intelectuais" como Sader, eles foram satanizados e tidos como obscurantistas, o que serviu para intimidar o restante da sociedade.
Sader não tem nenhuma vergonha em admitir que pretende promover políticas culturais "que consolidem na cabeça das pessoas as razões pelas quais o Brasil está melhor". Isso no meu tempo chamava-se lavagem cerebral. Sader quer nos impor a marteladas e gritos de "aprende desgraçado!" (método chamado eufemisticamente de "consolidação") duas idéias: a primeira, a de que o Brasil está melhor (e quem ouse discordar disso será sumariamente rotulado de obscurantista, elitista, direitista ou coisa pior); a segunda, a de que as razões da melhora tampouco podem ser discutidas; Emir Sader, por meio de suas políticas culturais, é quem irá determiná-las (digo, "consolidá-las").
Enfim, o sujeito diz uma coisa dessas e ninguém parece achar nada demais. E já que, provavelmente, ninguém irá manifestar-se sobre o assunto, sinto-me na obrigação de responder a Sader, nem que seja por desencargo de consciência: "Vai consolidar coisas na cabeça da senhora sua progenitora! Comigo não, violão!"
Sader não tem nenhuma vergonha em admitir que pretende promover políticas culturais "que consolidem na cabeça das pessoas as razões pelas quais o Brasil está melhor". Isso no meu tempo chamava-se lavagem cerebral. Sader quer nos impor a marteladas e gritos de "aprende desgraçado!" (método chamado eufemisticamente de "consolidação") duas idéias: a primeira, a de que o Brasil está melhor (e quem ouse discordar disso será sumariamente rotulado de obscurantista, elitista, direitista ou coisa pior); a segunda, a de que as razões da melhora tampouco podem ser discutidas; Emir Sader, por meio de suas políticas culturais, é quem irá determiná-las (digo, "consolidá-las").
Enfim, o sujeito diz uma coisa dessas e ninguém parece achar nada demais. E já que, provavelmente, ninguém irá manifestar-se sobre o assunto, sinto-me na obrigação de responder a Sader, nem que seja por desencargo de consciência: "Vai consolidar coisas na cabeça da senhora sua progenitora! Comigo não, violão!"
Por fim, destaco apenas mais um trecho da entrevista. Como bom intelectual orwelliano, funcionário exemplar do Ministério da Verdade, Sader diz, em castiça novilíngua, que a Fundação promoverá um "pluralismo" de idéias. Em seguida, ele menciona alguns possíveis palestrantes convidados: Noam Chomsky, Marilena Chauí, José Luis Fiori, Eduardo Galeano, István Mészáros.
Como se pode ver, haja pluralidade. Pluralidade assim, só mesmo nas reuniões do Comintern... O "debate plural de idéias", na novilíngua sadérica, significa isso: um encontro de viúvas da URSS.
Pobre Rui Barbosa (e saudades dos tempos em que o Brasil contava com intelectuais do porte de um Rui Barbosa)! Deve estar tendo espasmos no túmulo. Jamais ele recebeu em casa um hóspede tão espaçoso, inoportuno e mal-educado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário