quinta-feira, 11 de agosto de 2011

"Levanta, me traz um café que o mundo acabou": os tumultos em Londres como pretexto

 "Nós estamos entediados quase como se o tédio viesse de nós mesmos" (M. Heidegger)

Há muitos problemas com certo tipo de análise dos tumultos em Londres. Os atos de vandalismo e violência gratuita naquela e em outras cidades inglesas estão sendo interpretados por muitos como novas manifestações de uma crise terminal do capitalismo. O problema é que o capitalismo está em crise terminal desde Trótsky. 

Como muitos intelectuais anseiam pela queda do capitalismo mais do que por qualquer outra coisa, eles não podem deixar de solidarizar-se, em alguma medida, com os vândalos ingleses. É certo que tal solidariedade costuma vir numa linguagem prolixa, o que faz com que as análises aparentem ser tolerantes, moderadas e socialmente sensíveis. Antes de brindar o público com especulações sociológicas duvidosas, alguns analistas procuram fazer ressalvas do tipo: "Ninguém está apoiando a violência, mas...". O problema com esse expediente retórico é que ele soa muito parecido com aquelas manifestações de racismo que costumam ser antecedidas por "eu não sou racista, mas...". Sabe-se que o problema vem sempre depois do mas

Nas análises que tenho visto sobre as riots inglesas, o que vem depois do mas é, não raro, uma premissa equivocada: a revolta dos jovens possui razões profundas, ancoradas nas injustiças inerentes ao sistema capitalista. Os depredadores agem, mas os verdadeiros culpados seriam "o Sistema", "a sociedade inglesa", "o desemprego", "a falta de oportunidades" e uma série de outros bodes expiatórios. Alguns analistas sugerem ser necessário saber quem são os jovens rioters, como se o "desvelamento" sociológico de suas condições de vida - e é certo que uma parte deles vem das classes mais baixas (mas só uma parte!) - fosse explicação auto-evidente para a violência. Se descompactado, tal pressuposto revela-se intrinsecamente absurdo: é como se a pobreza conduzisse necessariamente à violência e ao crime; como se, partindo de certas categorias de pessoas, o ataque a seres humanos inocentes  (pois é isso o que está ocorrendo na Inglaterra) fosse uma manifestação legítima contra o sistema opressor. No Brasil, sociólogos, cientistas políticos e demais analistas apegam-se às formulações mais rudimentares e primitivas deste argumento.

Avançado por intelectuais anti-capitalistas, aquele raciocínio é sempre muito previsível. Como se trata de um esquema fechadinho, os fatos é que se virem para se acomodar dentro dele. Este estilo não é exclusividade brasileira, obviamente. O mesmo padrão de interpretação, sem tirar nem pôr, observou-se por ocasião dos atentados terroristas de 11 de setembro. Ali, pensadores badalados no establishment cultural globalizado, como Noam Chomsky e Jean Baudrillard, apontaram os EUA ou o sistema capitalista como os verdadeiros responsáveis pelos ataques às torres gêmeas do WTC. Tratava-se do mesmo vício de raciocínio: os terroristas estavam reagindo - ainda que de modo extremado, os analistas faziam questão de atenuar - à falta de oportunidades e à opressão gerada pelo "capitalismo global intervencionista".

Chomsky, por exemplo, não parecia estar muito indignado com os terroristas que mal acabaram de matar milhares de seus compatriotas. Em vez disso, acusou os EUA - justamente o país que lhe conferia prestígio graças àquele tipo de crítica - de ser um "Estado terrorista" (ver: Noam Chomsky. 2001. 9/11. New York: Open Media/Seven Stories Press).

Baudrillard não ficou atrás. Escreveu: 

"Olhando de perto, pode-se dizer que eles o fizeram, mas nós o desejamos... Quando o poder global monopoliza a situação a este nível, quando há tamanha condensação de todas as funções na maquinaria tecnocrática, e quando nenhuma forma alternativa de pensamento é permitida, que outro caminho há senão uma guinada situacional terrorista? Foi o próprio sistema que criou as condições objetivas para essa brutal retaliação" (ver Jean Baudrillard. 2002. The Spirit of Terrorism. London: Verso. pp. 5-6 - grifos meus).

A posição absolutamente infundada de Chomsky e Baudrillard - que trata o terror como uma retaliação - foi corroborada por muitos outros intelectuais e amplificada dentro e fora do universo acadêmico. Ela espalhou-se na mídia autodenominada "progressista" como fogo em palheiro. No Brasil, foi praticamente a única opinião adotada pelos assim chamados especialistas - aquelas mesmas pessoas que hoje vaticinam sobre as riots inglesas em programas de televisão, jornais, blogs etc.

Segundo aquela visão, os EUA, assim como um ímã, atraíram para si os ataques. Tudo se passava como se os terroristas da Al-Qaeda tivessem sido irremediavelmente atraídos para o campo magnético do WTC - símbolo do poderio econômico norte-americano -, não tendo outra alternativa (é Baudrillard quem diz com todas as letras!) que não a de se explodir contra milhares de inocentes. Os terroristas estariam expressando um instinto de liberdade, instinto demasiado humano que, sob condições de opressão, tende a se mostrar exasperado e, eventualmente, violento. Já os EUA, o país agredido, sendo inexorável e aprioristicamente culpado no tribunal da História, deveria absorver o golpe com humildade e resignação. Como disse o analista político Frédéric Encel, neste tipo de interpretação tudo se passa "como se os trabalhadores no World Trade Center e os passageiros dos aviões seqüestrados encarnassem o mal da América, tendo que expiar a culpa pelo culto do rei dólar, o destino dos Apaches, o McDonald‘s..." (citado por Paul Berman. 2004. Terror and Liberalism. New York & London: W. W. Norton &  Company. p. 203).

Sendo o "Império" ou o "Sistema" o único agente significativo do terrorismo, análises como as de Chomsky, Baudrillard e congêneres acabam por equiparar os terroristas e as vítimas, ambos passivamente sujeitos à atuação de um ator histórico que, de fora e acima, determina-os igualmente. Diante do algoz essencial e categorial - o Sistema - as vítimas de fato (os milhares de mortos nos atentados suicidas) e os agressores de fato (os terroristas da Al-Qaeda, Hamas ou Hezbollah) são todos, de direito, igualados na condição de pacientes históricos. Diante do "fato" primeiro da opressão, o terrorismo torna-se praticamente um imperativo categórico. Eis um tipo de "terrorismo intelectual" - na expressão de Jean Sévillia (Jean Sévillia. 2000[2009]. O Terrorismo Intelectual. São Paulo: Editora Peixoto Neto) - emergente após o 11 de setembro.

As interpretações de comentaristas brasileiros das riots em Londres seguem exatamente a mesma trilha. Poder-se-ia dizer que elas são menos interpretações do que está de fato ocorrendo, e mais enunciações de um ponto de vista ideológico travestido de análise, uma vez que o quadro interpretativo jamais se altera conforme realidades distintas. Na contramão da percepção comum - e da definição dos dicionários -, intelectuais progressistas demonstram descontentamento com o fato de que vândalos estejam sendo chamados de vândalos, depredadores de depredadores e arruaceiros de arruaceiros. Consideram que estes são rótulos discriminatórios e simplistas. Segundo eles, seria preciso tratar aquelas pessoas como "manifestantes", e compreender as razões de fundo para tanto ódio.

Na Inglaterra, até os meios de comunicação de viés esquerdista (como a BBC, por exemplo), já começam, diante das evidências, a chamar os perpetradores da violência por aquilo que eles são: vândalos, delinqüentes, baderneiros. Diante de cenas chocantes - como o roubo de pertences do jovem Mohammed Ashraf Haziq, espancado por uma turba de "manifestantes", ou o salto da polonesa Monica Konczyck para escapar de um prédio em chamas (cuja foto virou capa do The Daily Telegraph) - a opinião pública começa a se indignar contra violência tão gratuita e estúpida. A população inglesa cobra mais energia da polícia. Mais de 70% das pessoas manifestam-se a favor de uma intervenção do Exército para conter a desordem. Mais sensatos que nossos analistas, pais e mães de vândalos demonstram toda sua vergonha pelas atitudes insanas de seus filhos.

Partidários de uma visão de mundo rousseauniana-marxista, os intelectuais anti-capitalistas vêem os distúrbios na Inglaterra como expressão de uma luta de classes ou de um conflito racial entre negros pobres e explorados contra brancos ricos e privilegiados. No entanto, esta visão distorce profundamente a presente realidade. As principais vítimas dos ataques não são "a sociedade inglesa", ou "as classes favorecidas", ou mesmo "o Estado repressor". No conflito, os maiores prejudicados são pequenos comerciantes, pessoas comuns, muitos oriundos de países de terceiro mundo, que, sozinhos, têm procurado se organizar para proteger seus negócios, mantidos à custa de muito esforço e dedicação. A única violência de cunho aparentemente racista registrada até o momento partiu de rioters de origem afro-caribenha, que, aos gritos de "vocês vão queimar", atropelaram três jovens muçulmanos, que tentavam proteger seus comércios em Birmingham na última terça-feira (09/10/2011).

Em suma, parece inútil procurar razões concretas para o ódio que tomou conta de uma parte da juventude inglesa. As razões, possivelmente, não são tão evidentes quanto parecem aos intelectuais midiáticos. É claro que a possibilidade de a polícia londrina ter assassinado um jovem inocente - como havia feito antes com o brasileiro Jean Charles - pode ter sido o estopim da crise. No entanto, o ódio dos jovens extrapolou em muito aquele problema específico. Como escreveu o filósofo André Glucksman, "o ódio precede e predetermina o objeto que fabrica para si mesmo" (ver André Glucksman. 2004[2007]. O Discurso do Ódio. Rio de Janeiro: Difel. p. 140). O ódio não precisa de razões, apenas de pretextos. E é isso precisamente que intelectuais e formadores de opinião, para agir com responsabilidade e seriedade, deveriam evitar fornecer àqueles jovens. Nem a "falta de oportunidades", nem o "desemprego" e nem tampouco a violência policial podem ser justificativa para aquela revolta. Nenhuma condição adversa explica tamanha explosão de violência. A maior parte das conquistas humanas ao longo da história - sejam intelectuais, culturais, materiais ou espirituais - surgiram em condições adversas e em meio à total falta de oportunidades (guerras, perseguições, fome, injustiças etc.). 

Pense-se, por exemplo, nas "condições adversas" dos monges anacoretas que, perseguidos por todo o Império Romano, evadiram-se para o deserto para, de lá, espalhar o Cristianismo; ou na "falta de oportunidade" oferecida a Boécio, filósofo e mártir cristão que, na prisão, aguardando a sentença de morte, teve forças para escrever sua maior obra, A Consolação pela Filosofia; ou em Edmund Husserl, que, mesmo perseguido e coagido pelos nazistas por sua origem judia, produziu grande parte de sua magistral obra filosófica; ou em Viktor Frankl, que soube extrair dos horrores experimentados nos campos de concentração os princípios de uma vida íntegra e de uma prática psicanalítica eficiente. 

Nenhuma daquelas pessoas entregou-se a uma revolta gratuita e destrutiva, e teriam todas os motivos para fazê-lo. Em vez disso, fortaleceram-se e criaram bens culturais que transcenderam em muito suas próprias vidas. Talvez seja mesmo isso que separe o homem maduro - o spoudaios, como o chamava Aristóteles - do homem infantil - ou "homem revoltado", como o chamou Albert Camus.

Mas não é preciso ser nenhum Boécio ou Husserl para ser um homem maduro. Um exemplo de maturidade neste sentido pode ser colhido no seio mesmo dos tumultos em Londres. Ele foi dado pelo paquistanês Tariq Jahan, de 45 anos, cujo filho foi um dos três jovens mortos em Birmingham. Não consigo imaginar "condição mais adversa" e propícia à revolta do que a perda de um filho. No entanto, apenas horas depois de ter segurado o filho morto nos braços, o sr. Jahan ainda teve a força de espírito e a grandeza de recomendar à comunidade islâmica de Londres que mantivesse a calma e não pensasse em vingança, que naquele momento poderia dar início a um conflito étnico de proporções imprevisíveis (ver aqui).

Diante de atitudes como a de Tariq Jahan, parece-me absurdo querer justificar a violência apelando à "falta de oportunidades". Se um pai cujo filho foi morto covardemente não se revolta - e, muito pelo contrário, consegue até demonstrar generosidade e inteligência -, chega a ser indigna e tacanha a idéia de que um jovem possa sair quebrando tudo porque está desempregado.

Com seu humanismo rousseauniano algo alienado, muitos intelectuais apelam a causas abstratas como "o combate ao racismo", "o combate à desigualdade", "o fim do capitalismo", "a justiça social". Com isso, acabam menosprezando as situações enfrentadas por pessoas de carne e osso. Os vândalos londrinos acabam servindo de meros instrumentos para um discurso ativista, movido por uma espécie de tédio existencial. Os intelectuais ativistas parecem sempre entediados com a ordem liberal e burguesa. Com isso, acabam demonstrando uma mórbida euforia diante de eventos como os de Londres (e como os atentados de 11 de setembro). Isso ocorreu em diversos momentos da história e, não por acaso, muitos intelectuais enragés apoiaram regimes revolucionários e violentos. 

É por essas e outras que o intelectual enragé comporta-se, às vezes, como a mais alienada das criaturas, ignorando os sofrimentos concretos que as causas que defendem freqüentemente geram quando postas em prática. De vez em quando, fico com a impressão de que o intelectual ativista é um personagem da canção "Nostradamus", de Eduardo Dusek. Nada é capaz de abalar sua visão das coisas, e muito menos as próprias coisas. Diante do fim do mundo e da falecida cozinheira Carlota, é como se ele fosse pedir: "Levanta, me traz um café que o mundo acabou!". 

O que os rioters precisam é ser contidos e chamados à responsabilidade. Não precisam de bajulação, lisonja e pretextos fáceis para sua revolta, que são as únicas coisas que a moderna cultura ocidental tem lhes oferecido, graças à idealização tola da juventude, da novidade, da revolução e da rebeldia. 

Para se demonstrar interesse e compaixão verdadeira em relação aos vândalos londrinos - com a ressalva de que tal compaixão deve ser sempre secundária frente à compaixão com suas vítimas -, seria preciso, além de responsabilizá-los criminalmente, transmitir-lhes os seguintes conselhos: não acusem o mundo injusto ou a sociedade injusta. Parem, vocês primeiro, de cometer injustiças com os seus vizinhos. Não usem os "males do sistema" como desculpa para seus atos. Ao contrário do que dizem os bem-pensantes, vocês são os sujeitos da violência e não a sociedade. Saibam que, em circunstâncias muito mais desfavoráveis que as suas, homens e mulheres construíram e constroem coisas boas para si próprios e para os outros. Não sejam autocomplacentes e revoltados. A revolta não conduz a ações inteligentes diante de problemas determinados, mas a violência gratuita e difusa contra pessoas inocentes. Lembrem-se de que a juventude nazista também se dizia perseguida e vítima de um complô sionista. Por último, pensem por si próprios. A turba é sempre má conselheira, para não falar dos intelectuais anti-capitalistas...




Das Virtudes e Vícios do Ceticismo

Em maio de 2012, o autor destas linhas frequentava um curso preparatório para o difícil e concorrido concurso do Itamaraty. Faziam três...