Eis que surge, enfim, um assunto político na corrida presidencial: o aborto. Com ele, vêm à tona na disputa eleitoral personagens que, de outro modo, permaneceriam ausentes: os religiosos e conservadores. Sim, eles existem e eles votam!
A posição do PT é clara: o aborto é uma questão de saúde pública e de direitos das mulheres. Como consta do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), um dos objetivos do governo Lula em relação aos direitos das mulheres é: "Apoiar a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos". O PNDH-3, recorde-se, foi assinado pelo Presidente da República e pelos seus ministros, dentre os quais a Sra. Dilma Roussef, candidata à sucessora de Lula no mais alto cargo da República.
Depois de ter sofrido críticas, o governo alterou ligeiramente o texto do PNDH-3 em diversos pontos. No que se refere ao aborto, o texto deixou de falar abertamente em descriminalização, sugerindo apenas se tratar de uma questão de saúde pública (um dos grandes entusiastas da legalização do aborto era o Ministro da Saúde, José Gomes Temporão).
Mas a mudança no texto não significa uma mudança de projeto: a preocupação do governo permaneceu sendo com as mulheres, especialmente as mais pobres, que seriam levadas a realizar abortos em clínicas clandestinas, com risco para sua saúde e integridade física. O plano do governo para o aborto se insere nas chamadas "políticas de combate à desigualdade" (no caso, de gênero e de classe). Note-se que, em tais políticas, a vida do feto não é, em nenhum momento, objeto de interesse ou preocupação. Parte-se do pressuposto de que o feto não é uma vida independente, autônoma, sujeita de direitos individuais. O feto é considerado mera extensão da mãe, que, portanto, tem total liberdade para "decidir sobre seu corpo", mesmo que essa decisão implique no extermínio do feto (note-se ainda que a desigualdade gritante de condição entre um feto indefeso e adultos que decidem sobre sua existência não é contemplada, por sua vez, pelas "políticas de combate à desigualdade").
A Sra. Dilma Roussef nunca questionou a posição do governo sobre esse assunto. Pelo contrário, ela a endossou em diversas ocasiões. Em outubro de 2007, por exemplo, numa sabatina no jornal Folha de São Paulo, ela disse com todas as letras: "eu acho que tem de haver a descriminalização do aborto" (ver aqui). Já em 2009, em entrevista à revista Marie Claire, ela voltou a afirmar: "Abortar não é fácil pra mulher alguma. Duvido que alguém se sinta confortável em fazer um aborto. Agora, isso não pode ser justificativa para que não haja a legalização. O aborto é uma questão de saúde pública (...) Como saúde pública, achamos que tem de ser praticado em condições de legalidade" (ler aqui).
Recentemente, temendo, enquanto candidata, perder os votos dos cristãos (evangélicos ou católicos), a Sra. Dilma mudou o discurso. Passou a se dizer, pessoalmente, contrária ao aborto e "favorável à vida". Mas, mesmo mudando o discurso, a preocupação com o destino do feto continuou ausente. O argumento da Sra. Dilma passou a ser agora o de que o aborto é "uma violência contra a mulher" (ver aqui). Trata-se de uma afirmação particularmente bizarra. Toda violência é uma ação e, portanto, pressupõe um sujeito que a comete. Se o aborto é uma violência contra a mulher, quem é o sujeito de tal violência? Quem a comete? Que eu saiba, são a própria mulher e o médico aborteiro. Logo, se o aborto é uma decisão da mulher sobre seu próprio corpo, como é possível que ele seja considerado uma violência contra essa mesma mulher? O raciocínio da Sra. Dilma é um primor de obtusidade e falta de lógica.
Ou seja, ainda que a Sra. Dilma Roussef se diga agora contrária ao aborto - para não desagradar aos religiosos -, suas razões para tanto não são as mesmas que as razões tradicionalmente apresentadas pelos religiosos. Enquanto esses últimos consideram o aborto uma violência contra o feto, a Sra. Dilma diz que o aborto é uma violência contra a mulher. Enfim, a candidata petista mudou de posição, mas não mudou tanto assim. Ao afirmar ser contrária ao aborto em nome da defesa da mulher (antes que do feto), ela produz um híbrido monstruoso (fundado num equívoco lógico) entre sua antiga posição e sua posição atual, de modo a não ter que se comprometer definitivamente com nenhuma das duas. Daí o uso recorrente que ela faz de expressões vazias tais como "isso é uma questão de saúde pública" (e a imprensa deveria lhe perguntar: o que isso significa, saúde pública para a mãe ou para o feto?), "sou favorável à vida" (e a imprensa deveria lhe perguntar: refere-se especificamente à vida do feto?), "sou pessoalmente contra o aborto" (e a imprensa deveria lhe perguntar: mas, se for eleita presidente, pretende ou não encaminhar uma lei que o descriminalize, como consta na pauta do seu partido?).
Até o momento, a Sra. Dilma Roussef não se explicou sobre a mudança de posição, nem nada lhe foi perguntado diretamente. Apesar de suas declarações passadas, a grande imprensa não hesitou em qualificar de "boatos" (expressão usada de maneira descritiva e supostamente neutra, como se não fosse exatamente o argumento do PT para desqualificar as acusações) as sugestões de que a Sra. Dilma tenha sido favorável ao aborto, ao menos em determinado momento de sua vida pública (ver, por exemplo, essa manchete do Globo Online). Tudo se passa como se ela tivesse sido sempre contrária à legalização do aborto. Tampouco a Sra. Dilma deixou claro se se trata de uma mudança de ponto de vista apenas pessoal - que, sem dúvida, seria um direito seu, contanto que declarado publicamente - ou de uma transformação completa da visão que o PT tem da sociedade. Teria a Sra. Dilma se distanciado do posicionamento histórico do partido? Se esse for o caso, ela deveria vir à público esclarecer a questão. Como, até o momento, a candidata se comporta de maneira dissimulada e melíflua sobre o assunto, o eleitor tem todo o direito de pensar que se trata de uma fraude.
Enfim, parece-me claro que a Sra. Dilma está sendo oportunista e adotando um discurso eleiroreiro, de última hora. Trata-se simplesmente de desonestidade eleitoral. Tudo leva a crer que a visão da Sra. Dilma continua sendo a visão tradicional do seu partido e que sua repentina mudança de opinião é conversa mole para enganar os eleitores desavisados. Enquanto ela não renegar a assinatura que imprimiu no PNDH-3 ou prestar contas das declarações do passado, penso que é prudente imaginar que, uma vez eleita, ela fará passar um projeto de lei que aprove a legalização do aborto.
Esse é o lado ruim da questão, o fato de lidarmos com uma candidata desonesta. Mas, como eu disse no início, penso que a questão do aborto é de fundamental importância para a política nacional. Pela primeira vez nessas eleições surge um tema capaz de mobilizar visões de mundo realmente antagônicas. A posição do PT - digo, a posição real, e não a farsa montada de última hora para atrair votos - é uma posição claramente progressista. Ela está alinhada com o que pensa certa parcela da sociedade. No meio universitário e artístico, por exemplo, a visão progressista tende a ser largamente majoritária. É ali, provavelmente, que o PT encontrará ouvidos solidários ao projeto de legalizar o aborto, associado, para essas pessoas, ao ideário feminista da emancipação da mulher.
Contra tal visão, no entanto, uma outra grande parcela da sociedade - dentro da qual se destacam os cristãos - defende uma posição conservadora. Para essa parcela, o aborto não é, de forma alguma, um direito da mulher, mas sim um crime hediondo, uma vez que o feto é considerado um ser vivo desde o momento da concepção.
O antagonismo concreto revelado pela questão do aborto é, então, muito simples: trata-se de uma disputa entre o progressismo e o conservadorismo ou, em outras palavras, entre "esquerda" e "direita". Esse antagonismo não tinha surgido até o presente momento e, por isso, fico perplexo ao constatar que boa parte da imprensa oficial venha tratando a questão do aborto como um desvio das questões 'centrais' da disputa presidencial, como se se tratasse de uma intromissão indesejada da esfera moral e religiosa sobre o mundo da política.
Ora, parece-me, ao contrário, que nada pode ser mais político do que o confronto entre progressistas e conservadores, entre esquerdistas e direitistas. Essas duas forças políticas têm estado presentes ao longo de toda história moderna. Nos EUA, por exemplo, o combate entre elas é franco e vigoroso. Lá, os liberals correspondem ao que estou chamando de "progressistas", enquanto os conservatives seriam, literalmente, os nossos "conservadores". Também lá nos EUA, são os liberals quem costumam defender a legalização do aborto e as tais políticas contra a desigualdade, ao passo que os conservatives tendem a defender os valores religiosos e o direito inalienável à vida do feto enquanto indivíduo autônomo.
Nos EUA, as duas correntes se digladiam em campo aberto. Há meios de comunicação explicitamente liberals, como há os abertamente conservatives. O debate é franco e sem dissimulação. Uns e outros acusam-se mutuamente, fazem troça, debocham, discutem, em suma, confrontam-se democraticamente, sem não-me-toques e fingimento.
No Brasil as coisas não são assim. Isso se dá porque, embora uma imensa parcela da população seja conservadora (talvez a maioria da população brasileira), a quase totalidade dos formadores de opinião é constituída por progressistas. Os formadores de opinião costumam vir do meio universitário, especialmente das ciências humanas (de áreas como direito, comunicação social, ciências sociais, história, psicologia, pedagogia etc.), que são amplamente progressistas. Portanto, a visão de mundo progressista, ainda que numericamente minoritária, aparece como politicamente default, sendo a posição conservadora relegada ao estatuto de aberrante ou ultrapassada. "Conservador" e "direitista", no Brasil de hoje, se tornou uma ofensa, antes que uma posição política legítima e auto-consciente.
Daí a pouca importância dada, na grande mídia, à questão do aborto. Você não verá, por exemplo, um jornalista da TV Globo perguntando diretamente à Sra. Dilma Roussef: "a senhora mudou de opinião em relação ao aborto? A senhora renega o PNDH-3?". O problema do aborto veio à tona de forma subterrânea, difundindo-se sobretudo entre a população religiosa (conservadora e direitista) via internet (através de blogs, twitter, orkut etc.).
Com efeito, se dependêssemos exclusivamente da imprensa oficial, o tema do aborto nunca teria surgido nessas eleições e, portanto, o confronto - essencial a toda democracia - entre as forças progressistas e conservadoras permaneceria reprimido e sufocado pela pauta oficial estabelecida pelos grandes veículos de comunicação, de comum acordo com os candidatos.
Foi isso que se viu nos debates eleitorais e na cobertura jornalística profissional: pouca discussão política, confrontos engessados, temas pontuais e irrelevantes tratados em destaque. Acontece que esse era exatamente o plano do PT para a disputa eleitoral de 2010. A ausência do confronto político tinha sido comemorada pelo próprio Presidente da República, ao celebrar o fato de que as eleições 2010 seriam disputadas apenas por candidatos de esquerda, sem a presença de nenhum "troglodita de direita" (ler aqui).
Note-se, por incrível que pareça, que o Presidente disse isso como se a ausência da direita fosse um sinal claro de avanço da democracia. Democracia, para o Presidente da República, significa a atuação exclusiva e hegemônica de uma única força política. O grave é que, de um jeito ou de outro, o establishment midiático parecia corroborar a posição do Presidente. E até mesmo a oposição. Não fosse a pressão exercida quase que invisivelmente pelos religiosos, e o candidato José Serra continuaria disputando com a outra candidata o troféu de progressista do ano. Os religiosos forçaram-no a se inclinar para a direita, coisa que ele o faz - devido ao seu passado e a sua timidez - ainda com muita relutância. Pelo menos, no que se refere à questão do aborto, parece que o Sr. José Serra manteve a coerência. Ele sempre foi contrário à legalização e, portanto, conservador sob esse aspecto.
No Brasil, o conservadorismo não goza de expressão política e midiática. Foi o tema do aborto que conseguiu lhe dar alguma visibilidade, graças à internet. Não fosse a internet, e a disputa eleitoral permaneceria pautada pelos valores do stablishment progressista.
O mínimo que a imprensa oficial deveria fazer - e não faz - é esclarecer sobre a natureza essencial da divergência: entre progressistas e conservadores. A imprensa não deveria corroborar a fraude petista, deixando de abordar frontalmente o tema. Ao contrário, ela deveria forçar a candidata petista a se explicar, deixando claro que, caso contrário, o eleitor deveria estar ciente de que a Sra. Dilma Roussef é mesmo favorável à legalização do aborto, porque essa é uma plataforma do seu partido.
Se isso tivesse sido feito, teríamos então duas alternativas: ou a candidata do PT seria forçada a assumir abertamente sua posição, arcando com as conseqüências eleitorais que tal posição pudesse ocasionar - "sou favorável à legalização, e pretendo encaminhar um projeto de lei que a possibilite" - ou, então, esclarecer francamente os motivos que a fizeram abandonar aquela posição. Seja como for, o eleitor só teria a ganhar.
Assim é a democracia: um confronto honesto entre visões de mundo e projetos políticos divergentes, entre os quais o eleitor, informado por uma imprensa responsável, deverá optar por livre e espontânea vontade. Mas no Brasil, assistimos ao triste espetáculo de uma candidata mentindo aos olhos de todos sem que ninguém ouse confrontá-la. Temo que, mais uma vez, tenhamos um segundo turno onde perguntas básicas continuarão por serem feitas.
Espero estar errado, mas creio que nem o candidato José Serra nem tampouco os tele-jornalistas farão diretamente à Sra. Dilma Roussef a única pergunta que ora importa: "Afinal, por que a senhora mudou de opinião sobre o aborto?". Bastaria ao Sr. José Serra fazer essa pergunta nos debates na TV e, creio, ele seria eleito com certa facilidade.
A posição do PT é clara: o aborto é uma questão de saúde pública e de direitos das mulheres. Como consta do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), um dos objetivos do governo Lula em relação aos direitos das mulheres é: "Apoiar a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos". O PNDH-3, recorde-se, foi assinado pelo Presidente da República e pelos seus ministros, dentre os quais a Sra. Dilma Roussef, candidata à sucessora de Lula no mais alto cargo da República.
Depois de ter sofrido críticas, o governo alterou ligeiramente o texto do PNDH-3 em diversos pontos. No que se refere ao aborto, o texto deixou de falar abertamente em descriminalização, sugerindo apenas se tratar de uma questão de saúde pública (um dos grandes entusiastas da legalização do aborto era o Ministro da Saúde, José Gomes Temporão).
Mas a mudança no texto não significa uma mudança de projeto: a preocupação do governo permaneceu sendo com as mulheres, especialmente as mais pobres, que seriam levadas a realizar abortos em clínicas clandestinas, com risco para sua saúde e integridade física. O plano do governo para o aborto se insere nas chamadas "políticas de combate à desigualdade" (no caso, de gênero e de classe). Note-se que, em tais políticas, a vida do feto não é, em nenhum momento, objeto de interesse ou preocupação. Parte-se do pressuposto de que o feto não é uma vida independente, autônoma, sujeita de direitos individuais. O feto é considerado mera extensão da mãe, que, portanto, tem total liberdade para "decidir sobre seu corpo", mesmo que essa decisão implique no extermínio do feto (note-se ainda que a desigualdade gritante de condição entre um feto indefeso e adultos que decidem sobre sua existência não é contemplada, por sua vez, pelas "políticas de combate à desigualdade").
A Sra. Dilma Roussef nunca questionou a posição do governo sobre esse assunto. Pelo contrário, ela a endossou em diversas ocasiões. Em outubro de 2007, por exemplo, numa sabatina no jornal Folha de São Paulo, ela disse com todas as letras: "eu acho que tem de haver a descriminalização do aborto" (ver aqui). Já em 2009, em entrevista à revista Marie Claire, ela voltou a afirmar: "Abortar não é fácil pra mulher alguma. Duvido que alguém se sinta confortável em fazer um aborto. Agora, isso não pode ser justificativa para que não haja a legalização. O aborto é uma questão de saúde pública (...) Como saúde pública, achamos que tem de ser praticado em condições de legalidade" (ler aqui).
Recentemente, temendo, enquanto candidata, perder os votos dos cristãos (evangélicos ou católicos), a Sra. Dilma mudou o discurso. Passou a se dizer, pessoalmente, contrária ao aborto e "favorável à vida". Mas, mesmo mudando o discurso, a preocupação com o destino do feto continuou ausente. O argumento da Sra. Dilma passou a ser agora o de que o aborto é "uma violência contra a mulher" (ver aqui). Trata-se de uma afirmação particularmente bizarra. Toda violência é uma ação e, portanto, pressupõe um sujeito que a comete. Se o aborto é uma violência contra a mulher, quem é o sujeito de tal violência? Quem a comete? Que eu saiba, são a própria mulher e o médico aborteiro. Logo, se o aborto é uma decisão da mulher sobre seu próprio corpo, como é possível que ele seja considerado uma violência contra essa mesma mulher? O raciocínio da Sra. Dilma é um primor de obtusidade e falta de lógica.
Ou seja, ainda que a Sra. Dilma Roussef se diga agora contrária ao aborto - para não desagradar aos religiosos -, suas razões para tanto não são as mesmas que as razões tradicionalmente apresentadas pelos religiosos. Enquanto esses últimos consideram o aborto uma violência contra o feto, a Sra. Dilma diz que o aborto é uma violência contra a mulher. Enfim, a candidata petista mudou de posição, mas não mudou tanto assim. Ao afirmar ser contrária ao aborto em nome da defesa da mulher (antes que do feto), ela produz um híbrido monstruoso (fundado num equívoco lógico) entre sua antiga posição e sua posição atual, de modo a não ter que se comprometer definitivamente com nenhuma das duas. Daí o uso recorrente que ela faz de expressões vazias tais como "isso é uma questão de saúde pública" (e a imprensa deveria lhe perguntar: o que isso significa, saúde pública para a mãe ou para o feto?), "sou favorável à vida" (e a imprensa deveria lhe perguntar: refere-se especificamente à vida do feto?), "sou pessoalmente contra o aborto" (e a imprensa deveria lhe perguntar: mas, se for eleita presidente, pretende ou não encaminhar uma lei que o descriminalize, como consta na pauta do seu partido?).
Até o momento, a Sra. Dilma Roussef não se explicou sobre a mudança de posição, nem nada lhe foi perguntado diretamente. Apesar de suas declarações passadas, a grande imprensa não hesitou em qualificar de "boatos" (expressão usada de maneira descritiva e supostamente neutra, como se não fosse exatamente o argumento do PT para desqualificar as acusações) as sugestões de que a Sra. Dilma tenha sido favorável ao aborto, ao menos em determinado momento de sua vida pública (ver, por exemplo, essa manchete do Globo Online). Tudo se passa como se ela tivesse sido sempre contrária à legalização do aborto. Tampouco a Sra. Dilma deixou claro se se trata de uma mudança de ponto de vista apenas pessoal - que, sem dúvida, seria um direito seu, contanto que declarado publicamente - ou de uma transformação completa da visão que o PT tem da sociedade. Teria a Sra. Dilma se distanciado do posicionamento histórico do partido? Se esse for o caso, ela deveria vir à público esclarecer a questão. Como, até o momento, a candidata se comporta de maneira dissimulada e melíflua sobre o assunto, o eleitor tem todo o direito de pensar que se trata de uma fraude.
Enfim, parece-me claro que a Sra. Dilma está sendo oportunista e adotando um discurso eleiroreiro, de última hora. Trata-se simplesmente de desonestidade eleitoral. Tudo leva a crer que a visão da Sra. Dilma continua sendo a visão tradicional do seu partido e que sua repentina mudança de opinião é conversa mole para enganar os eleitores desavisados. Enquanto ela não renegar a assinatura que imprimiu no PNDH-3 ou prestar contas das declarações do passado, penso que é prudente imaginar que, uma vez eleita, ela fará passar um projeto de lei que aprove a legalização do aborto.
Esse é o lado ruim da questão, o fato de lidarmos com uma candidata desonesta. Mas, como eu disse no início, penso que a questão do aborto é de fundamental importância para a política nacional. Pela primeira vez nessas eleições surge um tema capaz de mobilizar visões de mundo realmente antagônicas. A posição do PT - digo, a posição real, e não a farsa montada de última hora para atrair votos - é uma posição claramente progressista. Ela está alinhada com o que pensa certa parcela da sociedade. No meio universitário e artístico, por exemplo, a visão progressista tende a ser largamente majoritária. É ali, provavelmente, que o PT encontrará ouvidos solidários ao projeto de legalizar o aborto, associado, para essas pessoas, ao ideário feminista da emancipação da mulher.
Contra tal visão, no entanto, uma outra grande parcela da sociedade - dentro da qual se destacam os cristãos - defende uma posição conservadora. Para essa parcela, o aborto não é, de forma alguma, um direito da mulher, mas sim um crime hediondo, uma vez que o feto é considerado um ser vivo desde o momento da concepção.
O antagonismo concreto revelado pela questão do aborto é, então, muito simples: trata-se de uma disputa entre o progressismo e o conservadorismo ou, em outras palavras, entre "esquerda" e "direita". Esse antagonismo não tinha surgido até o presente momento e, por isso, fico perplexo ao constatar que boa parte da imprensa oficial venha tratando a questão do aborto como um desvio das questões 'centrais' da disputa presidencial, como se se tratasse de uma intromissão indesejada da esfera moral e religiosa sobre o mundo da política.
Ora, parece-me, ao contrário, que nada pode ser mais político do que o confronto entre progressistas e conservadores, entre esquerdistas e direitistas. Essas duas forças políticas têm estado presentes ao longo de toda história moderna. Nos EUA, por exemplo, o combate entre elas é franco e vigoroso. Lá, os liberals correspondem ao que estou chamando de "progressistas", enquanto os conservatives seriam, literalmente, os nossos "conservadores". Também lá nos EUA, são os liberals quem costumam defender a legalização do aborto e as tais políticas contra a desigualdade, ao passo que os conservatives tendem a defender os valores religiosos e o direito inalienável à vida do feto enquanto indivíduo autônomo.
Nos EUA, as duas correntes se digladiam em campo aberto. Há meios de comunicação explicitamente liberals, como há os abertamente conservatives. O debate é franco e sem dissimulação. Uns e outros acusam-se mutuamente, fazem troça, debocham, discutem, em suma, confrontam-se democraticamente, sem não-me-toques e fingimento.
No Brasil as coisas não são assim. Isso se dá porque, embora uma imensa parcela da população seja conservadora (talvez a maioria da população brasileira), a quase totalidade dos formadores de opinião é constituída por progressistas. Os formadores de opinião costumam vir do meio universitário, especialmente das ciências humanas (de áreas como direito, comunicação social, ciências sociais, história, psicologia, pedagogia etc.), que são amplamente progressistas. Portanto, a visão de mundo progressista, ainda que numericamente minoritária, aparece como politicamente default, sendo a posição conservadora relegada ao estatuto de aberrante ou ultrapassada. "Conservador" e "direitista", no Brasil de hoje, se tornou uma ofensa, antes que uma posição política legítima e auto-consciente.
Daí a pouca importância dada, na grande mídia, à questão do aborto. Você não verá, por exemplo, um jornalista da TV Globo perguntando diretamente à Sra. Dilma Roussef: "a senhora mudou de opinião em relação ao aborto? A senhora renega o PNDH-3?". O problema do aborto veio à tona de forma subterrânea, difundindo-se sobretudo entre a população religiosa (conservadora e direitista) via internet (através de blogs, twitter, orkut etc.).
Com efeito, se dependêssemos exclusivamente da imprensa oficial, o tema do aborto nunca teria surgido nessas eleições e, portanto, o confronto - essencial a toda democracia - entre as forças progressistas e conservadoras permaneceria reprimido e sufocado pela pauta oficial estabelecida pelos grandes veículos de comunicação, de comum acordo com os candidatos.
Foi isso que se viu nos debates eleitorais e na cobertura jornalística profissional: pouca discussão política, confrontos engessados, temas pontuais e irrelevantes tratados em destaque. Acontece que esse era exatamente o plano do PT para a disputa eleitoral de 2010. A ausência do confronto político tinha sido comemorada pelo próprio Presidente da República, ao celebrar o fato de que as eleições 2010 seriam disputadas apenas por candidatos de esquerda, sem a presença de nenhum "troglodita de direita" (ler aqui).
Note-se, por incrível que pareça, que o Presidente disse isso como se a ausência da direita fosse um sinal claro de avanço da democracia. Democracia, para o Presidente da República, significa a atuação exclusiva e hegemônica de uma única força política. O grave é que, de um jeito ou de outro, o establishment midiático parecia corroborar a posição do Presidente. E até mesmo a oposição. Não fosse a pressão exercida quase que invisivelmente pelos religiosos, e o candidato José Serra continuaria disputando com a outra candidata o troféu de progressista do ano. Os religiosos forçaram-no a se inclinar para a direita, coisa que ele o faz - devido ao seu passado e a sua timidez - ainda com muita relutância. Pelo menos, no que se refere à questão do aborto, parece que o Sr. José Serra manteve a coerência. Ele sempre foi contrário à legalização e, portanto, conservador sob esse aspecto.
No Brasil, o conservadorismo não goza de expressão política e midiática. Foi o tema do aborto que conseguiu lhe dar alguma visibilidade, graças à internet. Não fosse a internet, e a disputa eleitoral permaneceria pautada pelos valores do stablishment progressista.
O mínimo que a imprensa oficial deveria fazer - e não faz - é esclarecer sobre a natureza essencial da divergência: entre progressistas e conservadores. A imprensa não deveria corroborar a fraude petista, deixando de abordar frontalmente o tema. Ao contrário, ela deveria forçar a candidata petista a se explicar, deixando claro que, caso contrário, o eleitor deveria estar ciente de que a Sra. Dilma Roussef é mesmo favorável à legalização do aborto, porque essa é uma plataforma do seu partido.
Se isso tivesse sido feito, teríamos então duas alternativas: ou a candidata do PT seria forçada a assumir abertamente sua posição, arcando com as conseqüências eleitorais que tal posição pudesse ocasionar - "sou favorável à legalização, e pretendo encaminhar um projeto de lei que a possibilite" - ou, então, esclarecer francamente os motivos que a fizeram abandonar aquela posição. Seja como for, o eleitor só teria a ganhar.
Assim é a democracia: um confronto honesto entre visões de mundo e projetos políticos divergentes, entre os quais o eleitor, informado por uma imprensa responsável, deverá optar por livre e espontânea vontade. Mas no Brasil, assistimos ao triste espetáculo de uma candidata mentindo aos olhos de todos sem que ninguém ouse confrontá-la. Temo que, mais uma vez, tenhamos um segundo turno onde perguntas básicas continuarão por serem feitas.
Espero estar errado, mas creio que nem o candidato José Serra nem tampouco os tele-jornalistas farão diretamente à Sra. Dilma Roussef a única pergunta que ora importa: "Afinal, por que a senhora mudou de opinião sobre o aborto?". Bastaria ao Sr. José Serra fazer essa pergunta nos debates na TV e, creio, ele seria eleito com certa facilidade.